A Geopolítica da Novorossiya 7 Anos Depois

Sete anos atrás, em 2014, a Rússia cometeu um grave erro. Putin perdeu a oportunidade que lhe foi dada pelos acontecimentos após o Maidan, a chegada ao poder da junta de Kiev e a fuga de Yanukovych para a Rússia. Nosso presidente, que tinha sido bastante consistente em suas ações geopolíticas, não permaneceu fiel a seus princípios. Digo isto não ironicamente, mas dominado por uma dor muito profunda e sinceramente cheio de fúria.

A oportunidade que perdemos foi a criação da “Novorossiya” (Nova Rússia), da “Primavera Russa”, do “Mundo Russo”. O que deveria ter sido feito à época era o seguinte:

  • não reconhecer a junta de Kiev, que chegou ao poder através de um golpe violento e ilegal,
  • apoiar o chamado de Yanukovych para restaurar a ordem constitucional,
  • apoiar a revolta no leste da Ucrânia,
  • enviar tropas para o país para restaurar o presidente legítimo (como aconteceu com Assad),
  • controlar a metade do território ucraniano,
  • avançar em direção a Kiev.

Depois de todas essas ações, a Rússia poderia ter parado e talvez procurado encontrar um equilíbrio antes de continuar com seus planos ou anunciar a existência de outro país.

Em vez disso, Moscou simplesmente se reunificou com a Crimeia e se empenhou em fornecer alguma assistência na manutenção do Donbass. Graças a Deus, não deixamos de fazer algo.

Supostamente, não tomar as ações acima era parte de um “plano astuto” que Putin tinha. Sete anos depois, é óbvio que, infelizmente, não havia tal “plano astuto”. Aqueles que se dedicavam a falar por Putin eram canalhas e covardes.

Surkov [1] não fez nada além de abandonar o Donbass e iniciar as negociações de Minsk. Naturalmente, o importante não é o que Surkov fez, mas o fato de que mesmo sabendo quem Surkov é e como ele age, ele foi colocado no comando de tudo. Tudo isso foi um sinal: não íamos fazer nada e, em vez disso, íamos iniciar negociações extensas e sem fundamento, porque tudo o que é colocado nas mãos de Surkov sempre leva ao mesmo destino – a lugar nenhum.

Foi exatamente por causa da posição que assumi em relação à Novorossiya que o Kremlin me afastou. Afastamento que dura até os dias de hoje. Fui expulso da Universidade Estadual de Moscou e me foi negada a participação em todos os principais canais de televisão, para os quais eu era convidado semanalmente [a] até então. Eles criaram um muro de silêncio ao meu redor.

Naquela época – mesmo antes do referendo da Crimeia – fiz uma análise estrutural muito importante do que estava acontecendo e expressei meu ponto de vista em todos os principais canais russos, assim como fiz vários posts em blogs e redes sociais. Eu dizia o seguinte:

Se reconhecermos a Crimea, a quinta coluna, ou seja, aqueles que são abertamente agentes estrangeiros e que não têm vergonha de trabalhar diretamente para forças hostis à Rússia, se revoltarão.
Se participarmos diretamente na criação da Novorossiya, então a sexta coluna, que são os liberais que estão no poder, ou seja, os oligarcas e uma parte significativa, ou talvez toda a elite russa, que são formalmente leais às idéias patrióticas do Presidente Putin, mas que estão ligados através de várias redes ao Ocidente e que estão muito preocupados com o confronto contra ele, começará a se revoltar….
Se a Novorossiya se tornar uma realidade, então a quinta coluna e depois a sexta coluna serão derrotadas, onde o mundo russo ressurgirá e um verdadeiro Império com uma ideologia contra-hegemônica será finalmente criado. Do meu ponto de vista, este era o único curso de ação.
Todas as fases e o desenvolvimento dos dramáticos acontecimentos ocorridos na Ucrânia, juntamente com uma análise geopolítica detalhada que segui passo a passo e descrevi em todo tipo de detalhes estes problemas, foram publicados em meu livro Ucrânia. Minha Guerra [b].

Entretanto, o livro quase foi banido.

A Crimeia chegou ser reconhecida, embora a princípio houvesse muitas dúvidas sobre ela. Naquela época eu me envolvi em um confronto bastante duro com Solovyov [2] na televisão. Agora ele é considerado um radical da linha dura. Mas naquela época, ele hesitava e até capitulou.

Putin tentou criar um projeto para a Novorossiya [c], mas ele foi rejeitado quase imediatamente.

Suas palavras na televisão sobre ajudar o “mundo russo” não cessaram de ressoar. Entretanto, a política agora segue uma direção diferente. As partes envolvidas no conflito abandonaram qualquer reivindicação e começaram a negociar, deixando de lado a Novorossiya: esta última não foi traída, mas também não foi salva. Eles só adiaram tudo.

Em resumo, podemos dizer que a sexta coluna venceu o jogo. A quinta coluna continuava a realizar comícios onde diziam que “Putin, você deve devolver a Crimeia a Kiev”! Mas Putin devia parar e não fazer mais nada. Infelizmente, foi isso que aconteceu.

E assim nasceu a história fantasiosa de um suposto “plano astuto” que Putin teria. O “plano astuto” se limitava a desescalar o conflito – algo inconsistente considerando que na época a junta de Kiev não tinha meios para travar uma guerra efetiva, a situação agora é completamente diferente! – a fim de manter relações com o Ocidente a todo custo. Putin não foi o único por trás deste plano, mas ele o aceitou.

Tal coisa não levou a lugar algum. Perdemos sete anos e nossos oponentes continuaram a avançar.

O único raio de esperança durante este tempo foi a eleição de Trump, que não era muito atlantista e, ao contrário, tentou não lutar desnecessariamente com a Rússia. Trump quis focalizar sua atenção nos problemas internos que os Estados Unidos tinham e deixar de lado o que estava acontecendo no resto do mundo. Por outro lado, ele era desafiador com o poderoso lobby globalista e até o chamou de “pântano”. No entanto, esta oportunidade também não foi aproveitada. Mais uma vez, tudo isso aconteceu graças à sexta coluna. Enquanto isso, vários agentes atlantistas disfarçados de “esquerdistas” foram enviados dos Estados Unidos à Rússia para demonizar Trump e o trumpismo.

Da mesma forma, todos os tipos de sanções foram impostas contra a Rússia como se tivéssemos realmente lutado muito para criar a Novorossiya. O Ocidente prometeu falsamente remover tais sanções, mas na realidade eles não as removeram e nunca irão removê-las. Ao invés disso, eles nos imporão muito mais.

Geopoliticamente, a Síria foi um movimento muito sábio e correto, mas de forma alguma eliminará ou acabará com o impasse na Ucrânia. Conseguimos uma vitória tática na Síria. E isso é uma coisa boa. Mas tal coisa não é tão importante quanto o esforço necessário que precisamos fazer para restaurar uma potência continental de caráter eurasiático. Isto nunca foi feito e a Novorossiya era a chave.

Desde que a sexta coluna venceu, a Rússia também não começou a se transformar espiritualmente. Uma nova ideologia nunca foi criada e, em vez disso, acabou reduzindo as coisas a uma simples questão técnica que acabou entregando o poder aos tecnocratas, que hoje dominam todos os principais processos políticos. A criação de uma nova idéia ficou no nada. Foi assim que tudo começou a estagnar, e tudo o que agora prevalece são formas primitivas de entretenimento e corrupção crescente, enquanto o tédio cresce rapidamente e o governo efetivamente ficou sem idéias. E foi assim que a Crimeia se tornou parte da desolada e triste paisagem social russa: sem o Donbass, a primavera da Crimeia foi reduzida apenas a uma espécie de compromisso. Embora na prática fosse melhor para nós manter a Crimeia do que ceder aos nazi-liberais de Kiev, a realidade é que a coisa toda está presa em uma espécie de limbo e não foi o que poderia ter sido.

E agora que os neocons estão de volta à Casa Branca com Biden, estamos de volta ao ponto em que paramos em 2014.

As negociações de Minsk não deram em nada.

Surkov não está mais envolvido no processo e desempenha um papel semelhante ao de Satanás durante o Apocalipse: ele estava aqui e agora se foi, ele simplesmente aparece e desaparece a seu bel-prazer. No entanto, nada do que aconteceu afetou o que veio antes.

Ao invés disso, durante esses sete anos o exército ucraniano se preparou, concordou em fazer parte da OTAN e agora toda uma geração de russófobos ucranianos radicais estão à sua disposição.

Durante todo este tempo, o Donbass esteve inativo. Sim, recebeu alguma ajuda, pois sem ela não poderia ter sobrevivido. Mas isso era tudo. Sobre a cabeça do Donbass pendia a espada de Dâmocles que foi encarnada no processo de Minsk, ou seja, sobre eles pendia a ameaça de que em algum momento Moscou entregaria os orgulhosos rebeldes do Donbass à República de Kiev, sendo estes últimos seus algozes.

E agora Washington está a um passo de dar luz verde para um novo ataque contra o Donbass. E não temos escolha a não ser responder ou não fazer nada. Mais uma vez repito as palavras que disse há sete anos no Piervy Kanal [3], que ainda mantêm sua atualidade, mas também são a razão pela qual eu não sou mais um convidado em seus programas:

“Se perdermos o Donbass, perderemos a Crimeia; se perdermos a Crimeia, perderemos a Rússia”.

Hoje, em meados de 2021, se Kiev lançar uma operação punitiva, simplesmente não teremos outra escolha senão declarar guerra. Mas quando esta luta começar, os neoconservadores terão alcançado seu objetivo. É fácil para eles sacrificar a Ucrânia da mesma forma que sacrificaram a ainda mais pró-atlantista Geórgia em 2008. Em qualquer caso, esta guerra afetará completamente as relações russo-européias, prejudicará a construção do Nord Stream, isolará a Rússia do Ocidente e, finalmente, consolidará a OTAN. Tais eventos não afetarão a verdadeira Rússia, mas serão um golpe para a Rússia de hoje, cheia de compromissos e incertezas. Desta vez as coisas não serão mais tão simples, pois tudo isso levará a um aumento da pressão exercida pelo Ocidente globalista sobre as elites pró-ocidentais russas, além de provocar a rebelião aberta de todos os clãs corruptos que possuem bens e dinheiro nos bancos ocidentais. A sexta coluna nunca aceitará a criação de uma Novorossiya e tentará todos os meios à sua disposição para derrubar o presidente. Isso é o que está por vir.

O “Biden coletivo”, ou seja, o conjunto das redes ocidentais (já que, como indivíduo, sendo muito velho, Biden não é capaz de entender algumas coisas), concebeu uma estratégia muito racional. Trump havia adiado o inevitável, mas essa pausa agora acabou.

Será este o início de uma guerra aberta entre a Rússia e os Estados Unidos? De modo algum, não importa o que a propaganda diga.

A Ucrânia não faz parte das prioridades estratégicas dos Estados Unidos. O que restar dela após o fim da ofensiva russa se tornará parte da OTAN, mas isto também não é particularmente importante, uma vez que neste ponto toda a Europa Oriental faz parte da OTAN. O golpe para a Rússia será muito mais sério. Especialmente porque durante os 20 anos anteriores, para não mencionar a década de 1990, a Rússia tentou incongruentemente equilibrar duas correntes:

  • um patriota continental, e 
  • uma que busca uma ocidentalização moderada.

Escrevi há cerca de 20 anos, quando Putin tinha acabado de chegar ao poder, um artigo no qual argumentava que tal equilíbrio seria extremamente difícil e que seria melhor escolher imediatamente a Eurásia e a multipolaridade [d].

Putin rejeitou ou, mais precisamente, adiou indefinidamente o continentalismo, e decidiu avançar lentamente em direção a este último. Meu único erro, na época, foi acreditar que tal coisa não duraria muito. Mas durou e segue durando.

Mas tudo sempre chega ao fim.

Não estou 100% certo de que isso seja exatamente o que está acontecendo agora, mas estamos chegando a um ponto em que se torna impossível manter o status quo. O compromisso entre patriotismo (inconsistente) e liberalismo (muito, muito mais inconsistente) em áreas como economia, cultura e educação, onde tentaram combinar todos os tipos de incongruências, como se fosse um ato de equilíbrio, está caindo dentro da Rússia.

E isto, em certo sentido, é perfeitamente natural e acaba sendo uma coisa boa. É melhor que isso aconteça tarde do que nunca acontecer de todo. Não estou dizendo que devemos atacar a Ucrânia primeiro. Deixo essa decisão para aqueles que podem tomá-la. Mas a verdade é que se Kiev lançar uma ofensiva contra o Donbass, simplesmente não teremos outra escolha senão fazer o que temos que fazer. E se não podemos evitar uma guerra, então não temos outra escolha senão vencê-la.

Se assim for, então teremos que fazer o que descrevi em todos os tipos de detalhes em meu livro Ucrânia. Minha Guerra: criar a Nova Rússia, instaurar a Primavera Russa, eliminar a sexta coluna e provocar o renascimento espiritual completo e total da Rússia. Este é um caminho muito difícil. Mas provavelmente não temos outra escolha.

Notas

[a] – https://www.1tv.ru/shows/dobroe-utro/pro-ukrainu/aleksandr-dugin-o-situa...
[b] – https://www.rulit.me/books/ukraina-moya-vojna-geopoliticheskij-dnevnik-r...
[c] – https://www.youtube.com/watch?v=Lz1B8o9p0Ts
[d] – https://pub.wikireading.ru/29247

Notas de Tradução

[1] – Vladislav Yurievich Surkov é um político e empresário russo. Ele foi chefe adjunto da administração presidencial russa de 1999 a 2011, período durante o qual foi frequentemente visto como o ideólogo principal do Kremlin e se propôs a implementar o conceito de democracia soberana. De dezembro de 2011 a maio de 2013, Surkov serviu como vice-primeiro ministro da Federação Russa. Após sua demissão, Surkov retornou ao Escritório Executivo Presidencial e tornou-se o conselheiro pessoal de Vladimir Putin nas relações com Abkhazia, Ossétia do Sul e Ucrânia. Ele deixou este cargo por ordem presidencial em fevereiro de 2020.
[2] – Vladimir Rudolfovich Solovyov é um publicista russo bem conhecido como apresentador de rádio e televisão. Ele se formou no Instituto de Aço e Ligas de Moscou e fez um pós-doutorado no Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais.
[3] – Piervy Kanal (Primeiro Canal) é uma empresa pública de televisão que opera na Federação Russa. Ela começou a emitir em 1 de abril de 1995 e foi fundada com base no primeiro canal da extinta Televisão Central Soviética, que começou a emitir em 22 de março de 1951. A nova “Televisão Pública Russa” (ORT) foi criada como uma sociedade anônima na qual o governo russo seria o maior acionista, mas o restante do capital poderia ser detido por empresas privadas. Sua programação é generalista e compete no mercado publicitário com grandes grupos privados.