Do Paradigma Moderno e do Tradicional, e da Linguagem

Recentemente foi publicada uma tradução ao português de um texto do Dugin, “René Guénon: Tradição como Linguagem”, de 1998[1]. Trata-se de um dos mais importantes textos duguinianos, não por sua pontualidade política ou metafísica, mas por sua abrangência, profundidade; este texto alcança as raízes cavernosas de todo seu pensamento em todas as áreas, pois trata de discutir a filosofia guenoniana no âmbito fundamental da experiência humana, que é a linguagem, e neste âmbito identificar os traços principais de todo posicionamento antimoderno e tradicional.
 
Nosso interesse nesse breve texto é nos demorar em uma discussão sobre a natureza da linguagem. O homem comum tem em mente, devido a sua educação moderna, que a linguagem é algo secundário e se ajusta ela mesma às necessidades científicas, como se a ciência moderna descobrisse na natureza certas realidades e elementos que a linguagem posteriormente deve nomear. Nós defendemos exatamente o oposto: é a ciência, enquanto impulso cego de limitar e “compreender” a natureza ilimitada, que inconscientemente se apoia nos recursos linguísticos para alcançar seus propósitos previsivelmente fracassados. A ciência, sem conseguir superar a linguagem, depende dela para a construção de conceitos, teorias, leis, tal como um pensamento depende de um paradigma, e não como um sapateiro depende de uma ferramenta. A linguagem, para a ciência, contém a priori todas as possibilidades e delimitações lógicas que derivam sistemas científicos, ou seja, teorias e afins. Mas não apenas para a ciência dos cientistas e laboratórios, esta relação da linguagem como fundamento do modo de ver o mundo também determina o modo de vida do homem comum, tanto o da lavoura como o da cidade, tanto o operário quanto o médico, o filósofo, o político. A linguagem determina a ontologia (ou o modo como vemos o ser e o experienciamos: vivemos).
 
É por isso que a linguagem é vista muitas vezes como uma revelação, ou como magia, e os linguistas, os filósofos (filólogos!) como magos capazes de criar, manter e destruir infinitos mundos possíveis. Quando Eliade fala que o ritual religioso “funda um mundo”, ele poderia bem ter se detido um pouco mais até poder afirmar que é a linguagem, por trás de toda cosmologia, que tem o papel de revelar o mundo a um povo, uma tribo, reunida como um corpo celeste composto por estrelas na noite do universo. É a linguagem que traça os limites metafísicos da visão humana, limitada, sobre um mundo que é também ele mesmo indivisível e ilimitado. É a linguagem que funda uma tradição, e ela é quem determina o valor e o significado (metafísico) dos mitos, que só têm seu valor e seu significado ao povo detentor das chaves mágicas de desvelá-los, que é o próprio universo “conceitual” oriundo da visão de mundo da linguagem vigente. É por isso que os mitos e as formas religiosas se transformam ao longo da história: a linguagem, por descontrole e decadência civilizacional, se modifica, algumas vezes radicalmente, e então as verdades antes possíveis de serem acessadas já voltam a permanecer reclusas, ocultas, inalcançáveis, sendo necessária então uma atualização dos mitos e dos rituais tribais (o que nunca aconteceu adequadamente no Ocidente).
 
Esta “perda das chaves mágicas” foi identificada até mesmo nas ciências, que se acreditam universais, analíticas, mas não passam de sistematizações conceituais, especulações (!) linguísticas sobre a natureza a fim de encaixá-la dentro da linguagem vigente. Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas, demonstrou como cada revolução científica significa apenas o abandono de um paradigma e a adoção de um novo, e como todo processo de “avanço científico” não passa de um jogo de quebra-cabeças que busca desenvolver um sistema consistente baseado em alguns dogmas fundamentais, os tais “compromissos metafísicos”, que os cientistas adotam em geral determinados por uma preferência estética ou de gosto, e nunca por “descobertas” ou “verdades”, ou ainda “provas”. Kuhn escreve, por exemplo, que
 
“Depois de 1630 e especialmente após o aparecimento dos trabalhos imensamente influentes de Descartes, a maioria dos físicos começou a partir do pressuposto de que o Universo era composto por corpúsculos microscópicos e que todos os fenômenos naturais poderiam ser explicados em termos da forma, do tamanho do movimento e da interação corpusculares. Esse conjunto de compromissos revelou possuir tanto dimensões metafísicas como metodológicas. No plano metafísico, indicava aos cientistas que espécies de entidades o Universo continha ou não continha – não havia nada além de matéria dotada de forma e em movimento. No plano metodológico, indicava como deveriam ser as leis definitivas e as explicações fundamentais: leis devem especificar o movimento e a interação corpusculares; a explicação deve reduzir qualquer fenômeno natural a uma ação corpuscular regida por essas leis. O que é ainda mais importante, a concepção corpuscular do Universo indicou aos cientistas um grande número de problemas que deveriam ser pesquisados. Por exemplo, um químico que, como Boyle, abraçou a nova filosofia, prestava atenção especial àquelas reações que poderiam ser interpretadas como transmutações. Isto porque, mais claramente do que quaisquer outras, tais reações apresentam o processo de reorganização corpuscular que deve estar na base de toda transformação química. Outros efeitos similares da teoria corpuscular podem ser observados no estudo da Mecânica, da Óptica e do calor” (Kuhn, 64-5).
 
A teoria metafísica cartesiana e newtoniana, assim, determinaram a organização da natureza, criaram uma linguagem, uma visão-de-mundo que contém os princípios fundantes das teorias científicas. Antes deles não havia qualquer legitimidade dada a teorias e experimentações científicas que pressupusessem uma visão corpuscular da natureza – elas mesmas seriam consideradas um absurdo. É o que acontece quando alguns cientistas resolvem “se adiantar” no tempo, pulando de um paradigma decadente para outro antes da comunidade científica:
 
Talvez as medições de Coulomb não precisassem ter sido ajustadas à Lei do Quadrado Inverso; com frequência, aqueles que trabalham no problema do aquecimento por compressão não ignoravam que muitos outros resultados diferentes eram possíveis. Contudo, mesmo em casos desse tipo, a gama de resultados esperados (e portanto assimiláveis) é sempre pequena se comparada com as alternativas que a imaginação pode conceber em geral, o projeto cujo resultado não coincide com essa margem estreita de alternativas é considerado apenas uma pesquisa fracassada, fracasso que não se reflete sobre a natureza, mas sobre o cientista(Kuhn, 57-8).
 
É também, portante, o que acontece quando a comunidade científica avança enquanto alguns cientistas resistem no paradigma anterior. Quando acontece uma revolução científica, o paradigma vigente entra em crise porque não mais dá conta da complexidade e dos problemas do seu sistema. Isso, porém, poderia ser assinalado como uma crise da linguagem: as pessoas não sabem mais falar sua própria língua, perderam, esqueceram do significado que possuíam seus conceitos, restringindo-se e limitando-se em um uso demasiado técnico, superficial, em um âmbito cuja multiplicidade conceitual não encontra mais a relação entre os conceitos e, portanto, a unidade da linguagem. Sem esta unidade, a linguagem se torna obsoleta e incapaz de expressar o continuum da natureza, exigindo uma complexificação linguística fundamental ou um abandono do paradigma (é o que acontece com cada vez mais rapidez nos países em que a filosofia analítica se instalara: já se fala em uma lógica para-consistente, porque a tradicional aristotélica “não dá mais conta” da realidade). Este esquecimento é a perda da chave mágica, a alienação do mundo a qual Hanna Arendt poderia ter identificado à linguagem se fosse capaz de ir mais ao fundo, como fora o Heidegger em A Caminho da Linguagem.
 
A ciência medieval, naturalista, só pôde existir em um mundo como o da escolástica, que determinava a visão aristotélica e seu conceito de substância como fundadores de uma noção corpórea da natureza do mundo – daí para Newton e Descartes é um pulo, e destes para a modernidade outro pulo. Caso os ocidentais tivessem abraçado a noção platônica e plotiniana do kósmos, certamente tudo seria muito diferente, e o Ocidente não teria se perdido em abstrações e revoluções imparáveis e aceleradas (tentando encontrar um fundamento perdido), e teria permanecido mais próximo do Oriente, cuja visão de mundo, holística, pressupõe a prioridade ontológica do continuum da unidade e da eternidade, antagônicas ao aristotelismo e ao logicismo.
 
Nossa proposta era falar sobre linguagem, mas estamos falando sobre filosofia. Pois a filosofia, uma dada visão de mundo, de certo modo é uma linguagem (complexa), embora ela seja, por sua vez, ainda determinada por algo mais fundamental, que é a linguagem em si. Antes do surgimento da filosofia e das especulações, havia apenas acenos conceituais, palavras e gestos que acenavam para fenômenos mais ou menos delimitados pelo olhar humano, e isto é a linguagem. A filosofia surge quando estes acenos se tornam demasiado complexos e técnicos, gastos, a fim de reconstruir o mundo como que por hipérboles, para novamente alcançar os fenômenos. Portanto, depois de pensarmos sobre paradigmas científicos, e depois filósofos, devemos pensar sobre o fundamento último, o último paradigma que sustenta todos os demais, que é a nossa linguagem. Durante milênios estamos no mesmo paradigma fundamental, que é a linguagem técnica – o mundo moderno é apenas sua consequência última; usamos a linguagem para nos referir a fatos fechados em si mesmos: a flor, o salto, o pé, o giro. Estes fenômenos, contudo, não são fechados nem completos, não há motivo qualquer para constatarmos e afirmarmos os limites (não falamos “espaço-temporais” porque isto já é uma limitação de sentido deveras moderna e bastante dúbia, limitada e fraca) da flor: onde a flor começa e onde ela termina? Sua natureza ilimitada é provada pela constante transformação do kósmos, pela constante mudança das “partículas”, “células” e “substância” daquilo que estamos chamando de flor. Este “aquilo” é ainda muito incerto, não conseguimos delimitá-lo e abarcá-lo suficientemente para poder nos referir a ele como um “aquilo”. O mesmo para o salto: usamos o artigo “o” como se estivéssemos o delimitado, mas onde começa e onde termina o salto? A dificuldade (impossibilidade) de abarcarmos a realidade com a linguagem vigente levou a humanidade a pensar que uma complexificação linguística era sempre necessária – o que ela não pensou é que essa impossibilidade não faz parte da linguagem vigente apenas, mas pertence á natureza da própria linguagem, cujo poder se limita ao aceno para a realidade, e nunca mais do que isso.
 
Esta complexificação levou dos estudos linguísticos a uma metalinguagem, da política a uma metapolítica e a uma geopolítica, e assim por diante. Hoje, estes estudos estão voltados a uma estratégia ideológica que busca resgatar a tradição e os princípios da humanidade – caso contrário, não apenas não teriam valor, mas até seriam prejudiciais, como foi todo o desenvolvimento linguístico de toda a humanidade até hoje. Alguns, pessimistas quanto a estes esforços, se entregaram ao monasticismo, a fim de lá, com o mínimo de linguagem possível, como é o caso dos cartuxos, contemplar o ser como ele é, limpando-se dos preconceitos naturais que o uso da linguagem impõe. É uma tentativa de retornar à Idade de Ouro, onde a única linguagem é o ver o amar, a presença.
 
A poesia, que usa da linguagem vigente para acenar, indiretamente, ao homem o ser, é uma arma que luta contra a tendência logicista e técnica da humanidade fazendo o caminho inverso, levando da linguagem complexa a uma mais simples, resgatando as chaves mágicas perdidas na história da linguagem. O poeta e o leitor de poesia se desfazem gradual e arduamente dos preconceitos vigentes, que são o caráter limitativo da linguagem, que é a essência do logicismo. O logicismo se fundamenta no esvaziamento de sentido da linguagem (que é um fenômeno “subjetivo” e “irracional”) a fim de desenvolver um sistema que se explique por si mesmo, objetivamente; o que vai de encontro com a essência da linguagem que é o próprio sentido e o aceno para a realidade, seja isso “irracional” ou não, e, sendo o que é, é a priori. O logicismo não aceita o a priori, não tem humildade para deixar à natureza sua própria razão de ser. Tragicamente, ele nega a realidade, nega o óbvio, o real, o fato existencial de tudo o que vemos e de tudo o que é.
 
O poeta resgata o sentido das palavras e, assim, resgata o aceno, o “intuitivo”, o óbvio que se perdeu no labirinto linguístico pelo esvaziamento de sentido. Sem o sentido, a intuição, o homem não alcança o ser, por isso se sente perdido. Os islâmicos, cuja doutrina se fundamenta na certeza metafísica do absoluto, resguardam um potencial de retorno à Idade de Ouro dentro de sua tradição, contrariamente ao Ocidente moderno e ao judaísmo, que se fundamentam na abstração e no logicismo (a kabala e a lógica moderna), e não por acaso se pretendem universais e com direito de possuir o mundo. Esta perdição no labirinto nos lembra Zenão e a impossibilidade lógica de Aquiles ultrapassar a tartaruga: outro filósofo, para zombar dessa parábola, afirmou que “agora vou provar que Aquiles ultrapassa”, e sai caminhando. Eis o espírito da intuição! A lógica proíbe, mas a vida impulsiona, ela vive antes da lógica, não há limites para o ser. É logicamente impossível que as coisas venham a existir, ou que existam desde sempre, motivo que deu ao catolicismo sua própria ruína quando privilegiou a lógica no sistema metafísico cristão, sobretudo na escolástica; a flor não deveria, por uma questão de lógica, desabrochar, mas eis que desabrocha, e por isso nos admiramos. A rosa não tem porquê.
 
Chega um momento, contudo, que até a poesia é prejudicial. Quando o homem está diante do ser, a contemplar, o poema apenas limitará o âmbito de sua visão, que já não tem limites. Um monge budista no alto de uma montanha gelada venceu toda necessidade linguística; um poema que fale de flor será uma negação da montanha, do céu e da experiência de estar ali, em suma, de todos os demais elementos insubstituíveis e inalienáveis do ser. Pois a linguagem não é holística como o ser. Isto se, para este monge, o próprio conceito de linguagem não se alterar e passar a significar exatamente a experiência de ali permanecer em silêncio e, assim, mais profundamente com o ser.
 
O Paradigma Aristotélico
 
O problema da linguagem nos leva, se percorrermos os traços da história ocidental, até apreendermos sua origem, ao conceito de substância aristotélico, que nos nossos tempos adquire nova e crítica importância devido às implicações ideológicas ou paradigmáticas que dele derivam.
 
Antes de Aristóteles, os conceitos filosóficos não tinham a fixidez, a rigidez técnica que os termos adquirem com a filosofia aristotélica. E esta implicação, esta influência aristotélica sobre a própria concepção de filosofia, através de cuja lente nos faz analisar os filósofos anteriores a Aristóteles e por isso incorrer em desvios grosseiros, não está exatamente nas palavras aristotélicas, mas no paradigma “inconsciente” que serve de pano-de-fundo para as palavras e afirmações. Nossa proposta aqui não é apresentar um texto acadêmico com “provas”, mas uma reflexão sobre algo que pode ainda ser aperfeiçoado. Vemos em Aristóteles não um interlocutor de Platão ou de quaisquer outros filósofos de sua época e anteriores, mas um mundo completamente à parte, incomensurável com os demais. O paradigma da substância ultrapassa o próprio conceito de substância, que é só a cristalização do primeiro em um princípio explícito – o paradigma se aprofunda no modo como Aristóteles usa da linguagem e fala através de conceitos técnicos, e não de expressões aproximativas que levem em conta a própria cognição so sujeito pensante, como acontece em Platão nos diálogos.
 
Em Aristóteles, encontramos também a noção de definição de conceitos e de verdade por correspondência. O legado destas noções, que fundamentam o modo como Aristóteles olha para o mundo e dele fala, é o da cristalização dos termos da linguagem. Com estas noções, passamos a acreditar, ou tomar como pressupostos, que as palavras que usamos para descrever indiretamente o mundo de fato traduzem ao pé da letra o mundo como ele é. A partir de Aristóteles, o mundo passa definitivamente a ser enxergado unicamente através da lente da linguagem técnica. O conceito de substância é apenas outro aspecto da mesma visão de mundo: assim como as palavras se estendem horizontalmente no plano universal e “eterno” da linguagem, cada uma separada da outra individualmente, da mesma forma o mundo passa a ser enxergado como um grande aglomerado de substâncias, ou seja, objetos inteiros e completos por si e em si mesmos. E estas substâncias são consideradas idênticas aos nossos substantivos da linguagem.
 
Isto contraria completamente a visão platônica e pré-socrática, para quem a linguagem ainda tinha um caráter simbólico e visava mostraracenar a realidade. Estes filósofos tinham como pressuposto a falibilidade essencial da linguagem, por isso não se preocuparam em erigir sistemas coerentes, uma vez que eles jamais igualariam e traduziriam a realidade em si. Foi com Aristóteles, em contraste, que apareceu o princípio de não-contradição, a primeira tentativa de sistematizar a realidade dentro de leis linguísticas: toda a realidade passa a ser compreendida como normatizada por esta lei baseada totalmente nas formas do raciocínio linguístico humano, e é a partir dessas formas, desde então, que toda a tradição filosófica ocidental se desenvolveu, analiticamente. Uma filosofia linguisticamente ou logicamente incoerente é considerada “obscura” e um absurdo, uma vez que neste paradigma cada termo passa a carregar um significado preciso, puramente técnico, impossível de ser transcendido pela mente humana a fim de alcançar, por raciocínio simbólico, a própria realidade viva e inencaixável.
 
Alguns pós-modernos e pós-analíticos, comentadores de McTaggart, parecem permitir agora uma negação dos princípios aristotélicos, mas o que acontece é todo o contrário. Por trás da negação da tradição moderna que eles costumam manter há um terrível e obscuro aprofundamento do paradigma aristotélico e sobretudo moderno, que nos deixam perplexos a questionar se eles realmente acreditam que estão no caminho certo, com suas interpretações absurdas sobre Platão (por exemplo, o caso dos adeptos da neurociência), ou se estão trabalhando conscientemente para desconstruir todas as possibilidades de superação dos paradigmas contra os quais afirmam combater, e assim agindo com total má fé e mentira. Quine, por exemplo, de modo algum apresentou uma superação do paradigma kantiano, mas o aprofundou: agora, “metafísica”, a que ele supostamente libertou da proibição kantiana, tem um significado completamente distinto daquilo que os gregos e os medievais, e até mesmo os modernos, concebiam; agora, para os pós-analíticos, “metafísica” é uma ciência fundamentada na lógica e nos limites da linguagem, é puro jogo lógico, não há um olhar para a realidade, mesmo que indireto. Com esta transformação de sentido do termo “metafísica”, que não está explícita nos escritos destes pós-analíticos, mas que é o paradigma pressuposto e indiscutível por eles aceito, imaginamos que há um interesse de apagar da memória ocidental o sentido original da metafísica, e um interesse inerente a isso de fazer com que nós, o povo ocidental, olhemos para a filosofia do passado através desta lente pós-moderna, e julguemos todo nosso passado e nossa própria existência a partir desta lente. É preciso abrir o olho para esta falsificação profunda que a filosofia anglo-saxã está tramando a fim de impô-la sobre toda a humanidade, e assim controlar todos os povos.
 
Pelo contrário, a única possibilidade de nós, ocidentais, superarmos o paradigma aristotélico, é nos depararmos e refletirmos sobre as inquietações de Heidegger sobre estes assuntos. Ele não propôs uma sistematização, um “conserto”, um “remendo” na lógica ocidental, mas, pelo contrário, propôs uma reflexão sobre a suposta necessidade de todos estes esforços de encaixar a realidade em sistemas que podem, e são, essencialmente limitados e falidos. Com este propósito, nos apresentou uma interpretação do mito da caverna platônico, a fim de lermos Platão do modo como o próprio texto platônico quer ser lido; diretamente refletido sobre a realidade, sem tentar descrevê-la ou dominá-la, mas unicamente vê-la, contemplá-la, a fim de receber dela aquilo que ela nos quer dar, um conhecimento puro, não limitado pela linguagem. Pois a própria caverna platônica é, de certo modo, uma prisão da linguagem contra a luz inabarcável da realidade que brilha no céu, dada pelos deuses.
 
Lembremos que todo o esforço platônico ao escrever era impulsionado pelo intuito de esmagar a doença sofística, que se propunha como a dadora de verdade através da retórica e da lógica. O que não eram os sofistas senão os fundadores do aristotelismo e de todo o paradigma ocidental? Embora tenhamos muito lido Platão, só o lemos até hoje através do prisma sofístico – corrompemos Platão, pensando tê-lo compreendido. E a culpa mais tenebrosa carregam hoje os pós-analíticos e pós-modernos, que trabalham a todo vapor para definitivamente apagar qualquer possibilidade de um retorno real ao pensamento platônico e pré-socrático.
 
Os filósofos que, ao longo da história ocidental, se deram conta deste erro paradigmático, foram os místicos e os neoplatônicos. É evidente que podemos enxergar que seus escritos são de certo modo “sistemáticos”, que apresentam algum rigor lógico e científico. Mas é natural quando é através da linguagem que se apresenta um pensamento. O diferencial destes filósofos é que eles direcionam o interlocutor para os fatos, suas teses não são peças dentro de um sistema fechado, mas mostrações, perspectivas tomadas em relação a uma mesma realidade inabarcável pela linguagem como um todo. É por isso, por exemplo, que encontramos em Plotino teses aparentemente opostas e contraditórias, como são as de 1) considerar a processão ontológica da realidade como uma decadência e um impulso para o mal e, por outro lado, a de 2) enxergar nesta processão um processo de realização e manifestação de um princípio que é o próprio bem em si. A linguagem aqui entra em pânico, os pseudo-intelectuais, que são sempre a maioria, clamam por se tratar de “misticismos” sem-sentido e afirmações anti-filosóficas, expulsando da “filosofia” os que assim expressam suas teorias, sem serem aptos a refletir sobre a natureza desta contrariedade linguística por puro egoísmo e comodismo, senão medo.
 
O Dualismo Transcendental
 
Contra os princípios aristotélicos, que nos governam até hoje e normatizam toda a cultura, a política e a visão-de-mundo ocidental, precisamos enfatizar o dualismo transcendental que está na base da natureza ontológica de toda a realidade. Em Plotino, este dualismo se dá o tempo todo, e se cristaliza na dualidade entre intelecto (noûs) e matéria, e dizemos isto apenas para deixar claro que o uno, o primeiro princípio plotiniano, não desfaz o dualismo que forma a realidade da alma humana, do mundo, e dos corpos.
 
Toda afirmação tem sua contraparte não-afirmação, tal como um filme fotográfico que contém os negativos sobre os quais serão feitos as fotografias que costumamos ver. Sem os negativos não haveria as fotografias. Sem as cores opostas umas às outras, e aqui falamos não mais só das fotografias, mas do mundo, não poderia haver qualquer cor no mundo. Todo fenômeno é um jogo de espelhos e como que possui sua “forma” (fôrma) contraparte.
 
O pontiagudo convexo exige o côncavo; o frio exige o quente, sem o qual o primeiro não teria medida ou determinação existencial. E assim como as formas corpóreas e ópticas, todas sensíveis, exigem seus opostos em um plano horizontal, também o ser exige algo como o não-ser, opostos em um plano vertical; o fenômeno do ente não poderia existir caso não houvesse o não-ente sobre o qual ele estaria sendo refletido e mantido, suspendido existencialmente. E é aí que Plotino introduz a matéria, ela é de fato para ele um espelho sobre o qual as formas do ser, o intelecto, são refletidas; e os reflexos são as formas sensíveis, os objetos que tocamos, ouvimos, vemos, enfim, sentimos. A matéria é como que o “pano de fundo” que permite a aparição dos fenômenos – caso não houvesse esse pano de fundo, nada poderia ser suspendido, as formas inteligíveis vagariam no vazio, mas antes disso sequer elas mesmas existiriam, uma vez que requerem algo como uma “anti-forma”, que é a matéria em si.
 
O descobrimento da necessidade deste espelho se reflete também nas ciências: os físicos quânticos concluíram que se há a matéria (para eles a essência do universo), deve haver a anti-matéria – e, não surpreendentemente, foram tomados por loucos místicos. Na física, a matéria é a própria realidade.
 
Mas a noção de dualismo, apesar das controvérsias que gera na tradição ocidental, foi parte de praticamente toda a história humana anterior ao que chamamos de paradigma aristotélico, mesmo naquelas civilizações que cultuavam um deus único (exceto as religiões abraâmicas, que se fundamentam no paradigma aristotélico). O yin e o yang orientais simbolizavam os fundamentos da realidade, e eram utilizados de maneiras intermináveis para se referir à constituição de qualquer coisa no universo. Nas mitologias germânicas, que refletem toda a visão indo-europeia, são o fogo e o gelo que se unem para formar o universo. O politeísmo ameríndio apresenta o mesmo: o fogo e o gelo, o leste e o oeste, o norte e o sul, a luz e a escuridão etc., não apenas constituem a realidade, mas são eles os princípios que guiam as almas (ou os espíritos) na caminhada existencial, ora a um equilíbrio entre opostos, ora a um fim luminoso em oposição a outro, tenebroso. A capacidade de expressão dos símbolos e dos mitos é infinita, e não por isso eles são relativos ou arbitrários, pois estão enraizados na própria constituição dual do homem e do mundo, da realidade. Apenas o homem moderno, esvaziado, desinformado e perdido em meio a um labirinto conceitual e linguístico vazio, não é mais capaz de compreendê-los; ele perdeu as chaves mágicas, perdeu a própria alma, e hoje luta contra uma ausência de identidade, um niilismo e uma falta de sentido da existência. O terrível de tudo é que, embora o homem moderno não enxergue mais sentido na realidade, ela entretanto permanece imponente e intocável pelas contradições lógicas que levaram os protestantes a afirmar o “milagre” da criação.
 
Estamos longe de esgotar um ataque certeiro contra o paradigma aristotélico, mas aqui acreditamos ter apresentado mais um absurdo do princípio de não-contradição que rendeu a fundação da decadência moderna. Ele pode não ser combatido dentro da própria linguagem e da lógica que ele mesmo formara – o que é de se esperar de um ambiente no qual ele mesmo impõe suas regras. Mas ele se torna absurdo quando miramos a própria realidade. Então, ou se assume a insignificância da lógica, permitindo aos que ainda queiram brincar com ela em um ambiente isolado de toda sua influência sobre o ambiente externo, ou será necessário negá-la politicamente e combatê-la para retirar-lhe o direito que adquiriu enquanto autoridade. Esta é uma tarefa que deve aprazer uma gama de soldados-filósofos e políticos formados em escolas tradicionalistas, perenialistas, antimodernas, fenomenológicas e afins, e que já foi apontada no artigo de Dugin, referindo-se à tarefa enorme que todos estes possuem dentro do paradigma inaugurado por René Guénon. Trata-se de uma tarefa de reconstrução da realidade, de reaproximação do homem com o mundo e de rencontro da alma universal ao seu centro. Trata-se do resgate da natureza, trata-se de retomar tudo.
 
O Paradigma Guenoniano
 
No texto de Dugin, Guénon figura como um paradigma, e pode gerar interpretações como a de considerar Guénon como um paradigma entre outros compossíveis. Mas isto não se segue, e Dugin está longe de pensar assim.
 
Segundo Dugin, Guénon é o paradigma da eternidade, em contraste com a temporalidade moderna. Um moderno é incapaz de compreender a amplitude dessa diferença, pois não se trata meramente de atribuir uma imortalidade no tempo para a realidade, de um lado, e uma mortalidade, de outro; a noção paradigmática da eternidade envolve toda uma visão-de-mundo que enxerga nas formas do mundo uma fluidez da qual nada escapa para um “reino da morte” – o ser está contido nesta fluidez e é a cada instante eternamente possível em sua totalidade. Talvez um estudo sobre Heráclito aqui chega de bom grado, e possamos retirar dele um ensinamento quando aponta que tudo está em constante mudança, mas a mudança em si permanece. Isto não quer dizer meramente uma concepção “mortal” ou “temporal” da realidade, como os modernos são capazes de interpretar em sua mediocridade – para Heráclito, o logos não morre, mas simplesmente se desenrola e se realiza pela transformação eterna das formas; estas, por sua vez, não desaparecem para dar lugar a outras (isto seria uma entrega ao paradigma aristotélico e ao conceito de substância), mas como que se estendem por uma dimensão misteriosa a qual por limitação nossa demos no nome de “tempo”. O próprio “tempo” é um aspecto desta realização. Heráclito não enxerga átomos ou indivíduos, apenas o logos.
 
Plotino parece ter compreendido a natureza das formas e de sua relação com o “tempo” ao conceber este como a natureza da própria alma universal, dando a ele sua necessária participação ontológica e impedindo que seja concebido em si, inconscientemente (porque os querelantes que assim concebem não percebem que o fazem), como uma abstração ou um mero conceito, como foi em toda a Idade Média dentro do paradigma aristotélico (disto para o insípido debate em torno do problema dos universais é apenas um passo). Em Plotino, o próprio “tempo” é eterno, e as formas internas a ele também o são; a diferença entre “tempo” e eternidade é apenas que no primeiro as formas se “movimentam” enquanto na segunda elas permanecem “estáticas”.
 
O que impede o moderno de compreender Plotino é sua limitação e seu olhar “específico”, profissional em torno de um tema, quando Plotino discursa da realidade como um todo, como um organismo que, para ser compreendido, deve ser visto, um holos. O tempo não é, por exemplo, uma linha sobre a qual a realidade rola e distribui seus momentos; esta é uma maneira de representar uma possível percepção regional (não-holística) do fenômeno, cuja natureza perspectivista e abstrata é mais um motivo que nos impede de tomar esta representação como uma explicação do tempo em si. O “tempo”, se é que podemos dar nome a um fenômeno desses que não é fechado em si mas está plenamente (portanto também “conceitualmente”) entrelaçado com o “resto” da realidade, é algo que tem sua maneira de ser independente das representações que dele se pode fazer. Por este motivo, para Plotino a única realidade cognitiva, e que é o próprio real em si, é a contemplação, o ver sem delimitar, definir, conceitualizar; mais sabe o homem que vê do que aquele que explica – este último já está tomando uma perspectiva limitada sobre a realidade como sendo a própria realidade em si, e caindo por isso em um inevitável erro.
 
O paradigma tradicional de Guénon, em contraste com o moderno, não é uma teoria entre outras. Trata-se de um apelo a uma reflexão direta sobre a realidade, sobre o mistério da existência, e a um abandono do impulso por dominar a realidade indomável. Por isso Guénon se preocupa em mostrar aos ocidentais, esquecidos e perdidos no labirinto dos conceitos, a natureza das civilizações tradicionais e orientais em geral, fundamentadas em um diálogo-sem-palavras com a vida e seus fenômenos, do qual as religiões tradicionais são expressões vivas de uma experiência profunda com a realidade metafísica, e não meramente delimitações abstratas sobre o real, como aconteceu em nossa escolástica ocidental (as opiniões quase pessoais de Guénon sobre nossa escolástica são irrelevantes aqui). O paradigma moderno, assim, é o paradigma do erro e da perdição – se o paradigma aristotélico é o fundamento do moderno ou se é apenas um outro nome para este, é discutível; nosso intuito com a introdução do primeiro é apontar para as origens metafísicas ocidentais através das quais se pode rastrear e escavar ainda mais fundo no erro moderno e ocidental, para cuja direção Heidegger também demonstrou grande preocupação em compreender e também combater.
 
Mircea Eliade nos apresentou um excelente estudo histórico sobre as religiões, e quando discorre sobre a civilização mesopotâmica nos diz que toda a teoria sistemática de Platão, seu mundo das ideias especialmente, estava presente muito tempo antes no olhar mesopotâmico sobre a realidade: os nobres eram seres eternos, os templos eram construídos segundo as formas da eternidade, e toda a civilização era uma imitação de uma pátria eterna. O imaginário mesopotâmico certamente não se limitava ao sistema platônico, e expressava uma visão-de-mundo holística sem depender de qualquer teoria filosófica para isto; pelo contrário, é a própria filosofia, enquanto tentativa de conter a realidade dentro de um sistema, acaba limitando o olhar, antes holístico, a apenas uma parcela da realidade. E como cada pessoa tem a “sua parcela”, a sua perspectiva única sobre o real, toda sistematização gerará controvérsias e discussões intermináveis. Foi o que aconteceu com o Ocidente filosófico, sobretudo ao interpretar, já decaído, a filosofia platônica não como um aceno, mas como uma definição do real.
 
A visão holística, de caráter plenamente intuitivo, é uma que todos podem ter sem controvérsias, sem discórdia, uma vez que a equação do todo tem sempre o mesmo resultado, independentemente dos caminhos e dos cálculos particulares que são internos a cada olhar e busca individual. Mas alcançá-la, depois de estar imerso na idiotia (no fechamento claustrofóbico da individualidade e da subjetividade), requer um despertar, uma violência de origem externa, como diria Heidegger ao comentar a soltura e a orientação dos presos da caverna platônica. O que os mesopotâmicos tinham por natureza, nós modernos devemos alcançar por uma mudança radical no nosso modo humano de ser e viver (ser e viver em sentido radical, metafísico, e não cotidiano e físico), despertar para uma vida radical, uma experiência, uma ek-sistência. Isso só será possível pela iniciação nos mistérios e nas artes, pela experiência com a morte e, talvez, com o sofrimento profundo, com a negação do conforto moderno, das distrações modernas, com o isolamento do “social”, com a escalada de uma montanha, com a experiência do sentido escatológico da vida humana.
 
Não é a filosofia, são as religiões vivas, as transmutações das massas humanas em um corpo possuidor de uma missão, a fúria berskerker de círculos seletos, que encontrarão a força necessária para que as almas humanas encontrem o caminho obscuro para fora do labirinto psicológico de milhares de anos de decadência conceitual constante que pesam sobre o imaginário ocidental como toneladas de ferro. É o olhar para o real que salvará os homens do abismo, e este olhar requer a violência para absorver a força necessária à fuga. A quantidade de energia que um líder carismático e místico, por exemplo, é capaz de despertar sobre as massas é incalculável, supera a capacidade de previsão das nossas ciências, e as massas só serão capazes de compreendê-lo sem medo e compaixão através da experiência, que não está dita nos manuais dos psicólogos nem nas nossas religiões ocidentais decadentes e indignas do favor divino. Dom Quixote é a figura do louco que desperta superando a fragilidade do seu corpo que livro nenhum é capaz de explicar, que laboratório nenhum pode calcular e esmiuçar, tal como não se explicava a força que um guerreiro germânico adquiria durante um embriagamento de fúria que lhe dominava o corpo e lhe fazia enxergar as valkírias postas a sua espera diretamente do Valhalla. O papel da filosofia é o combate intelectual que por ora determina a orientação de todos os povos, cujo poder outrora era concedido aos xamãs, que revelavam ao povo e aos guerreiros os movimentos das entidades metafísicas e a direção necessária a tomar em vista deles. Seu papel, hoje, é portanto revelar a essência do mundo moderno e os caminhos para combatê-lo, que devem ser os mesmos rumo a um despertar das correntes da caverna que impedem os homens e os mantêm distanciados da sua própria humanidade, da sua própria participação no todo real, que é o ser-eterno.
 
Assim, o conceito moderno de morte deve ser revisto: a morte não é a negação da vida ou um fenômeno à parte, mas um aspecto da mesma realidade da vida. A “morte” faz parte da extensão das formas no “tempo”, do “movimento”. E cada tradição é capaz de criar o seu conceito de morte, incomensurável com o das demais, pois o conceito é apenas uma prótese que acena para a realidade, e só esta não é essencialmente relativa, mas é absoluta. O conceito, por sua vez, é sempre relativo à visão-de-mundo como um todo de um determinado paradigma (ou subparadigma). Do mesmo modo, o conceito de beleza deve ser revisto: ele não é mero fenômeno estético, mas é um aspecto do modo de ser do real, que é orgânico, harmônico, multi-forme, e nada pode ser mais perfeito aos sentidos e à cognição das almas, sejam humanas sejam as do mundo e das criaturas em geral. Toda a visão-de-mundo ocidental deve ser revista e destruída, ao mesmo tempo em que se reconstrói o paradigma tradicional.
 
Para o moderno compreender esta mudança conceitual ele deve primeiro esquecer tudo o que “sabe” sobre estes fenômenos; a tradição não busca explicar o fenômeno da morte, por exemplo, como algo cuja impressão é dada igualmente a todos, como se toda linguagem tivesse por objetivo descrever um fato trivial. O moderno, ao se deparar com escritores tradicionais, busca entender como as descrições que lê se encaixam e explicam aquilo que ele supõe saber sobre os fenômenos (o que ele toma por óbvio, dado). Mas o ponto é que quando o moderno e os tradicionalistas nomeiam um fenômeno de “morte”, por exemplo, eles estão nomeando fenômenos distintos, e não apenas, como crê o moderno, dando descrições distintas sobre o mesmo. A realidade, pois, não contém em si algo que diretamente pode ser chamado de “morte”; somos nós, tradicionalistas ou modernos, que delimitamos arbitrariamente uma região do ser e a nomeamos com “morte” ou outro nome. A linguagem, pois, não é comensurável à realidade, entre elas há um abismo unicamente vencido pela intuição e pelo bom-senso, o que aqueles submersos no paradigma aristotélico não querem aceitar em sua mediocridade. Para eles, a palavra “morte” define algo da realidade que é fechado em si pelo logos, motivo que os faz defensores de definições eternas em deus; eles acreditam que há algo como um animal racional (definição de homem) eterno dado por deus, quando a verdade está longe de ser desse modo: o homem “substancial”, como o rio heraclitiano, nunca é o mesmo “homem” e está em constante mudança, uma vez que participa das formas dançantes do ser. O aviso de Heráclito não é o de que a realidade é inapreensível pelas almas, ou de que ela nunca é aquilo que é, mas pelo contrário, o de que a linguagem jamais alcançará a definição daquilo que a realidade é eternamente. Eis a lição que os ocidentais foram toda vida incapazes de aprender – é surpreendente e motivo de desesperou e loucura olhar para a história humana, olhar para os nossos dirigentes, intelectuais e até mesmo religiosos dos nossos tempos, e constatar que todos eles são incapazes de perceber o óbvio e em sua mediocridade afundam o mundo cada vez mais para dentro do inferno; não há uma luz no Ocidente, ninguém é capaz de abandonar a miséria do seu ego, o conforto da imbecilidade, para lançar um só olhar para a realidade, livre de pressupostos e lentes pervertidas.
 
É esta mesma inquietação que faz Heidegger afirmar que estão todos sempre mergulhados na cotidianidade. O moderno acha que sabe tudo sobre a realidade, fala da morte como se soubesse aquilo sobre o qual fala, fala da existência, mas nunca se questionou a fundo sobre estes mesmos conceitos. A noção de corporeidade é, por exemplo, entendida pelo moderno sob o prisma poluído da dureza, da materialidade sobretudo – é por isso que, ao ler Plotino e constatar que para ele o mundo corpóreo é apenas um reflexo das formas do intelecto, o moderno é incapaz de acompanhá-lo, pois está mergulhado nos seus pressupostos paradigmáticos, poluído, sujo com eles. Será, pois, que os modernos são mais humildes ao partir do senso comum, quando este mesmo “senso comum moderno” nega os valores realmente “comuns” do povo enraizado em suas tradições, quando esse senso comum moderno não passa de uma artificialização caprichosa da linguagem e não tem nada de simples e natural? Meus caros leitores, não estamos aqui falando de uma classe média perdida em seus labirintos, estamos falando da “elite” intelectual de toda a civilização, dos universitários, estudiosos, cientistas, ideólogos, que determinam a direção de toda a civilização, que só decai rumo ao abismo sem fundo, imparavelmente. Estamos matando a alma do mundo e dos homens a cada momento em que perdura este paradigma sustentado e defendido por uma elite prisioneira da caverna platônica; e não há ninguém para desamarrá-los, hoje, a não ser os russos e os iranianos, cujas classes dirigentes são as únicas lúcidas em meio à escuridão e ao caos. O Ocidente inteiro se encaixa no Das Man heideggeriano, o sujeito que não se apropria de seu ser e é o mero vazio ambulante, todo o Ocidente é um enorme homem-massa, gordo, mesquinho, de raciocínio superficial e pensamento lento, entregue à satisfação fisiológica e ao esquecimento metafísica de sua própria existência, não por isso auto-satisfeito mas, pelo contrário, eternamente incapaz de satisfazer-se, inquieto e perturbado, incapaz de notar que pe o peso do seu próprio corpo que oprime a circulação sanguínea da sua perna presa sobre o sofá, estrangulada, e que dói por isso amargamente. O Ocidente é um enorme orc tolkieniano, submisso ao satã, fedorento, egoísta, feio, cuja tarefa é unicamente destruir, ocupar, corroer, rasgar o próprio ser, sem jamais alcançar alcançar a vitória, mas tão somente a escravidão de um impulso derrotado já em sua origem.
 
A lógica, a linguagem, com o paradigma aristotélico, deixou de ser uma expressão do aceno e da poesia, da imaginação, para se tornar um instrumento de domínio sobre o real; o princípio de não-contradição é o primeiro estupro da natureza inaugurado por uma Grécia em plena decadência moral e espiritual. A partir de então, a natureza não parou mais de sangrar, ferida e humilhada, e com a tecnologia moderna, que é apenas uma consequência necessária do paradigma aristotélico, hoje ela é triturada, desmembrada e pulverizada por máquinas tenebrosas. Tudo que há de sagrado morreu no mundo moderno, e a única esperança está agora nos arsenais nucleares das grandes potências geopolíticas, que devem representar o remédio contra o câncer que busca engolir o mundo.
 
Assim, até que ponto o arqueofuturismo, que defende o contínuo uso das ciências e da tecnologia para fins utilitários, não está também preso no paradigma aristotélico? Uma coisa é defender a tecnologia nas forças armadas e no sistema estatal como um todo, como os russos fazem, para superar e poder enfrentar o Ocidente em todas as frentes, outra coisa é acreditar na neutralidade da tecnologia, quando ela carrega pressupostos filosóficos profundo e totalmente presos á visão-de-mundo que originou a modernidade. Não podemos nos desfazer hoje do dia para a noite dos nossos emails, todos nos tornamos dependentes deles e de muitas outras construções tecnológicas, pois eles são imposição daqueles que controlam a civilização – mas ao se tomar o poder e instaurar no mundo a multipolaridade tradicional, deve haver um esforço global para o abandono da tecnologia, de acordo com um dos mais puros e esquecidos pensamentos platônicos, que é o de que as artes são essencialmente inferiores à natureza e á contemplação. As artes buscam imitar o fenômeno da criação natural, e ao fazê-lo elas matam os entes, cortando regiões do ser e imprimindo nela algo alheio à fluidez das formas, que é a própria vida em si da alma do mundo. Por este motivo, toda imitação da fýsis não passa de um erro, do ponto de vista holístico; se é um erro, se associa à falsidade, ao pseudos, e este, por se opor à verdade, o bem, é intrínseco ao mal. Eis, pois, a natureza, a essência da maldade que se apoderou do Ocidente, e que é a origem de todos os demais males. Aliás, é por isso que os ortodoxos da Rússia vivem benzendo as tecnologias russas: estão purificando-as e redirecionando-as para fins sagrados e justificados por estes motivos, fins que se resumem à proteção da tradição e ao combate contra o Ocidente – seria portanto um absurdo, depois de vencido a guerra e instaurado a paz no mundo, se os russos continuassem o desenvolvimento científico e tecnológico a todo vapor para fins de ciência ou comodidade; e seria ainda uma blasfêmia se houvesse para isso as bênçãos dos santos padres: isto seria idêntico ao catolicismo e ao protestantismo ocidental.
 
Costuma-se dizer que Plotino, diferentemente de Platão, valoriza a arte a um grau em que ela alcança até uma superioridade sobre a natureza. A estátua de Zeus, feita por Fídias, é uma imitação direta das formas eternas acessadas por Fídias e inserida no kósmos, enquanto os corpos naturais são feitos pela mediação da alma, mais imperfeita que as formas eternas. Mas o próprio Fídias, enquanto corpo e alma, é a mediação para as formas de Zeus e a estátua, uma mediação que acontece no mundo corpóreo, inferior à produção direta das formas corpóreas através da fýsis. Não podemos, portanto, pensar que Plotino concebia uma arte superior à natureza; quando ele defende o valor da arte, é para protegê-la dos iconoclastas, demonstrar a origem divina e inteligível que algumas obras podem ter. Há uma passagem que, embora não trate exatamente sobre esta discussão, nos ajuda a compreender o pensamento plotiniano sobre este ponto: “E não são as estátuas mais vivas as mais belas, mesmo que as outras tenham proporções melhores? E não é um homem feio, mas vivo, mais belo que uma estátua de um homem belo? Sim, porque o vivo é mais desejável; e isto é porque tem alma; e isto é porque tem mais a forma do bem; e isto significa que é mais colorido pela luz do bem” (VI.7.22).
 
As artes, por serem essencialmente artificiais e separadas do ciclo vivo da natureza, e não por eventualmente imitarem de forma ruim as formas do intelecto, são piores que a natureza. Mais perfeita e essencial que as proporções da estátua de Fídias, portanto, é a vida natural das plantas e dos homens, dos animais, que formam um todo vivo e enquanto todo pertencem ao mundo inteligível. As formas inteligíveis impressas “eternamente” no mundo físico, a estátua de Zeus por exemplo, são uma abstração, uma técnica, e por isso não representam, sendo impossível representar, o mundo inteligível no físico sem que seja esta representação o próprio todo em si – e a estátua não é o todo. A vida, pois, é subjacente ao todo, está para além dos elementos particulares e só pode ser representada, secundariamente ao que ela é em si mesma, pelo todo, e é somente pela fýsis (portanto, pela alma do mundo, universal), em despeito da técnica (orquestrada pelas almas particulares sobre formas corpóreas e também particulares, parciais, sem a visão holística do ser), que o todo é representado. A vida, para Plotino, tem um valor especial, e é a própria essência da beleza das formas do intelecto – mas o todo eterno em que esta vida acontece no intelecto só pode ser representado pelo modo “eterno” de ser do mundo sensível, ou seja, pela fýsis, a natureza. A arte, pelo contrário, é a corrupção dessa vida, a intervenção abstrata (abstração não é inteligibilidade, o mundo inteligível de Popper é uma abstração discursiva do pensamento, enquanto o mundo inteligível de Plotino é o inteligível em si, o ser, e sua atividade é a contemplação) sobre a naturalidade da vida das formas sensíveis, que imitam da maneira mais inigualavelmente perfeita as formas do intelecto.
 
Conclusão
 
A tecnologia moderna depende dos sistemas da ciência, a ciência depende da filosofia, isto é, da visão-de-mundo filosófica expressa em conceitos abstratos. E esta visão-de-mundo, por sua vez, de um paradigma linguístico. As ideologias, em geral, inclusive a Quarta Teoria Política, participam da tecnologia, da ciência e da visão-de-mundo, dependendo do nível de profundidade e influência em que elas estão enraizadas. Nenhuma ideologia, contudo, alcança o patamar subjacente e universal da linguagem – todas as ideologias estão presas a um paradigma linguístico que é, atualmente, o “aristotélico”, inclusive a Quarta Teoria Política.
 
Entretanto, o objetivo da QTP é peculiar, e apresenta uma grande influência heideggeriana neste ponto: é acenar, desde dentro do paradigma moderno e aristotélico, para um outro paradigma, esquecido. O fato da filosofia guenoniana ser usada como o paradigma anti-moderno, ao qual a QTP aponta, é mais simbólico do que exato e analítico. Guénon expressou-se, obviamente, em terminologia moderna, negando-a porém; portanto, seu paradigma não se reduz aos seus conceitos modernos, ele os ultrapassa e busca uma simplicidade primordial sobre a qual Heidegger discursa quando se inclina a encontrar outro sentido, ontológico e não conceitual, para o termo “linguagem”. A linguagem nos mostra o mundo, é uma invocação mística, e acontece sem palavras: a flor que desabrocha nos fala o ser; um filósofo moderno pode rabiscar muitos conceitos e não nos dizer nada ainda assim, uma vez que seus conceitos não passam de abstrações e manipulação lógica.
 
A QTP, assim, não pode ser compreendida meramente como uma “metateoria”. Isto seria ignorar a natureza tanto da modernidade quanto do paradigma “guenoniano”. Um pós-moderno poderia então inventar uma “meta-meta-teoria”, elevar a complexificação ocidental a uma conceitualização universal, e superar a QTP por abranger mais que ela. Falemos, portanto, a linguagem do pedreiro, pois é mais próxima da verdade e do ser do que desses acadêmicos ou estudiosos que vivem longe das flores que desabrocham diariamente. O Dasein heideggeriano não é um sistema, é especulação constante, um caminhar constante. A QTP é uma visão-de-mundo, e carrega chaves capazes de abrir o mundo esquecido em que não as palavras, mas o ser solitário nos falava. Em que as montanhas falavam, o sol falava.
 
Considerar a QTP como, em si, uma mera universalização mais abrangente da realidade política contemporânea, é não compreender que seu propósito não é resolver buracos no sistema moderno nem consertar coisa alguma. Ela pretende substituir tudo, e isto deve significar o abandono do paradigma que erigiu o mundo moderno: que chamamos aqui de aristotélico, cuja investigação neste trabalho está longe de ter sido esgotada. Um esforço deve ser posto nesta investigação a fim de se compreender exatamente contra o que se deve lutar, a fim de não se cair de novo na roda moderna.
 
Devemos estudar a natureza da linguagem, refletir sobre esse diálogo silencioso que o homem trava com o mundo através da contemplação. Isto é imprescindível para uma vitória sobre tudo aquilo que queremos substituir. Se insistirmos em tornar as coisas mais complexas, estaremos jogando em favor do inimigo.