O problema antropológico da escatologia, parte 1

O problema antropológico da escatologia, parte 1

A questão do homem

Em nosso tempo está ficando cada vez mais claro que o próprio homem, sua própria existência, está em questão; e está ficando cada vez mais claro que estamos vivendo um momento crítico, extremamente crítico na história, e é possível (e até provável) que estejamos vivendo no final dos tempos.

Epidemias e guerras estão dizimando milhões de vidas; na OME, o mundo foi levado à beira de uma guerra nuclear que, uma vez iniciada, poderia acabar com a existência humana.

Ao mesmo tempo, os horizontes do futuro pós-humano estão se tornando mais claros na filosofia e na ciência. A teoria da singularidade, a transferência da iniciativa para o intelecto artificial, os avanços da engenharia genética, o refinamento da robótica, as tentativas de fusão do homem e da máquina (criação de ciborgues) — tudo isso está colocando em questão a própria existência do homem, sugerindo que devemos virar esta página da história e entrar decisivamente na era do pós-humanismo, do transhumanismo.

Em tal situação, é extremamente importante abordar novamente as questões antropológicas, com a máxima seriedade. Se o homem está à beira da extinção, da aniquilação, da mutação fundamental e irreversível, então o que ele é? O que ele era? Qual é sua essência e sua missão? Ao aproximar-se do limite, o homem pode rever melhor suas formas e assim conhecer sua essência, seu eidos.

Esta revisão pode ser feita de muitas maneiras diferentes. Tudo depende do ponto de vista original. Cada paradigma científico ou ideológico procederá a partir de suas próprias estruturas. Neste artigo, pretendemos dar sentido ao homem sobretudo no contexto da escatologia cristã, mas para esclarecer como a doutrina cristã representa o homem, sua natureza e seu destino nos últimos tempos, é necessário primeiro uma excursão a um problema mais geral da antropologia religiosa em geral.

O dualismo humano no Juízo Final

O fim do mundo na tradição cristã (assim como em outras versões do monoteísmo) é descrito em detalhes. O ápice de toda a história mundial será o momento do Juízo Final. E aqui encontramos uma característica principal da antropologia escatológica: o dualismo, a divisão final da humanidade em dois grupos, representados pelas imagens de cordeiros (rebanho – πρόβατον) e caprinos (ἔριφος). Os cordeiros são os eleitos que receberão uma boa resposta no Juízo Final. Os caprinos são os amaldiçoados, destinados à destruição eterna. Os cordeiros vão para a direita, para a salvação, os bodes vão para a esquerda, para a perdição.

O Evangelho de Mateus [cap. 25, versículos 31-36] descreve esta divisão desta maneira:

31. Quando o Filho do homem vier em sua glória, com todos os anjos, assentar-se-á em seu trono na glória celestial.

32. Todas as nações serão reunidas diante dele, e ele separará umas das outras como o pastor separa as ovelhas dos bodes.

33. E colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda.

34. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo.

35. Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram;

36. necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram’.

O Evangelho de Mateus [cap. 25, versículos 31-36].

31. ὅταν δὲ ἔλθη̨ ὁ υἱòς του̃ ἀνθρώπου ἐν τη̨̃ δόξη̨ αὐτου̃ καὶ πάντες οἱ ἄγγελοι μετ' αὐτου̃ τότε καθίσει ἐπὶ θρόνου δόξης αὐτου̃

32. καὶ συναχθήσονται ἔμπροσθεν αὐτου̃ πάντα τὰ ἔθνη καὶ ἀφορίσει αὐτοὺς ἀπ' ἀλλήλων ὥσπερ ὁ ποιμὴν ἀφορίζει τὰ πρόβατα ἀπò τω̃ν ἐρίφων

33. καὶ στήσει τὰ μὲν πρόβατα ἐκ δεξιω̃ν αὐτου̃ τὰ δὲ ἐρίφια ἐξ εὐωνύμων

34. τότε ἐρει̃ ὁ βασιλεὺς τοι̃ς ἐκ δεξιω̃ν αὐτου̃ δευ̃τε οἱ εὐλογημένοι του̃ πατρός μου κληρονομήσατε τὴν ἡτοιμασμένην ὑμι̃ν βασιλείαν ἀπò καταβολη̃ς κόσμου

35. ἐπείνασα γὰρ καὶ ἐδώκατέ μοι φαγει̃ν ἐδίψησα καὶ ἐποτίσατέ με ξένος ἤμην καὶ συνηγάγετέ με

36. γυμνòς καὶ περιεβάλετέ με ἠσθένησα καὶ ἐπεσκέψασθέ με ἐν φυλακη̨̃ ἤμην καὶ ἤλθατε πρός με.

Esta formulação sugere que a divisão ocorre entre nações (πάντα τὰ ἔθνη), mas a tradição a interpreta como uma divisão entre pessoas em um princípio mais profundo — ontológico. As ovelhas são aquelas cuja natureza se revela boa. Os caprinos — e aqui a referência ao rito judaico do banimento do bode expiatório é clara — são aqueles que se voltaram decisivamente para o lado do mal.

A escatologia, portanto, vê o fim da história humana não como uma unidade, não ex pluribus unum, mas precisamente como uma divisão, uma bifurcação, uma encruzilhada fundamental.

A humanidade é bifurcada no Juízo Final, completa e irreversivelmente. O resultado de sua existência no tempo é a distribuição em dois todos, que neste estado de bifurcação entram na eternidade. Isto não é mais uma etapa, nem uma posição intermediária, mas precisamente um fim irreversível. O fim do homem é a decisão absoluta e irrevogável de Deus no Juízo Final.

Assim, a escatologia afirma estritamente que o ponto ômega para a humanidade será sua bifurcação, sua divisão em ovinos e caprinos. Sobre os condenados — como bodes expiatórios — serão colocados simbolicamente todos os pecados da humanidade, e como tal serão separados dos outros, cujos pecados serão perdoados pela Graça divina.

A unidade especial da Igreja

Assim, o fim do homem será sua bifurcação. A tradição bíblica faz a história humana começar com Adão e o Paraíso. O homem foi criado como um todo e sua divisão em homem e mulher (a criação de Eva) foi o prelúdio para a queda em pecado e maior fragmentação. O resultado final de todo o processo histórico será o Juízo Final. Pode ser dito que o vetor geral da história passa da unidade para a dualidade.

O ensino cristão baseia-se no fato de que, nas etapas finais da história sagrada, o processo de queda em pecado foi superado pelo sacrifício voluntário do Filho de Deus, Cristo, que restabeleceu — mas em outro nível ontológico — a unidade original, unindo o povo disperso em uma nova totalidade — a Igreja de Cristo. A unidade da Igreja restaura a unidade de Adão e transforma aquela parte da humanidade que no Juízo Final será contada entre as ovelhas, o rebanho de Cristo.

No entanto, esta unidade não é mecânica, não é o resultado da soma de todos. A unidade e a integridade da Igreja, como enfatizado no Credo (“Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica”), inclui apenas aqueles que são salvos. A parábola evangélica sobre os convidados no banquete do casamento diz isto: “Muitos são os convidados, mas poucos são os eleitos” (Mateus 22:14).

No final, a unidade da Igreja consiste na comunhão dos eleitos — os santos, os salvos, aqueles que aceitaram Cristo e permaneceram fiéis a esta escolha até seu último suspiro. Os pecadores não herdarão o Reino de Deus, mas serão expulsos dele; eles não têm parte na “próxima era”. Seu destino é a ruína total, afundando-se no abismo. Portanto, a unidade da Igreja não inclui aqueles que se afastaram dela por sua própria vontade.

O bode expiatório

Deve-se olhar mais de perto para a imagem presente no Evangelho, da divisão em ovinos e caprinos. Obviamente, há aqui uma clara referência ao rito de sacrifício do Antigo Testamento, no qual um animal (ovelhas e touros) foi separado dos animais sacrificiais, que se tornou o ‘bode expiatório’ (em hebraico ‘azazel’ – עֲזָאזֵֽל; a expressão לַעֲזָאזֵֽל é literalmente ‘para remoção completa’). Na Septuaginta, esta expressão foi traduzida como ἀποπομπαῖος τράγος, em latim caper emissarius.

O livro de Levítico (16: 21-22) dá esta descrição do sacrifício de Arão:

21. Então colocará as duas mãos sobre a cabeça do bode vivo e confessará todas as iniqüidades e rebeliões dos israelitas, todos os seus pecados, e os porá sobre a cabeça do bode. Em seguida enviará o bode para o deserto aos cuidados de um homem designado para isso.

22. O bode levará consigo todas as iniqüidades deles para um lugar solitário. E o homem soltará o bode no deserto.

 

O livro de Levítico (16: 21-22).

21. καὶ ἐπιθήσει ααρων τὰς χεῖρας αὐτοῦ ἐπὶ τὴν κεφαλὴν τοῦ χιμάρου τοῦ ζῶντος καὶ ἐξαγορεύσει ἐπ' αὐτοῦ πάσας τὰς ἀνομίας τῶν υἱῶν ισραηλ καὶ πάσας τὰς ἀδικίας αὐτῶν καὶ πάσας τὰς ἁμαρτίας αὐτῶν καὶ ἐπιθήσει αὐτὰς ἐπὶ τὴν κεφαλὴν τοῦ χιμάρου τοῦ ζῶντος καὶ ἐξαποστελεῖ ἐν χειρὶ ἀνθρώπου ἑτοίμου εἰς τὴν ἔρημον

22. καὶ λήμψεται ὁ χίμαρος ἐφ' ἑαυτῷ τὰς ἀδικίας αὐτῶν εἰς γῆν ἄβατον καὶ ἐξαποστελεῖ τὸν χίμαρον εἰς τὴν ἔρημον

וְסָמַךְ אַהֲרֹן אֶת־שְׁתֵּי [יָדֹו כ] (יָדָיו ק) עַל רֹאשׁ הַשָּׂעִיר הַחַי וְהִתְוַדָּה עָלָיו אֶת־כָּל־עֲוֹנֹת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל וְאֶת־כָּל־פִּשְׁעֵיהֶם לְכָל־חַטֹּאתָם וְנָתַן אֹתָם עַל־רֹאשׁ הַשָּׂעִיר וְשִׁלַּח בְּיַד־אִישׁ עִתִּי הַמִּדְבָּרָה׃

וְנָשָׂא הַשָּׂעִיר עָלָיו אֶת־כָּל־עֲוֹנֹתָם אֶל־אֶרֶץ גְּזֵרָה וְשִׁלַּח אֶת־הַשָּׂעִיר בַּמִּדְבָּר׃

Em outras ocasiões, o ‘bode expiatório’ foi atirado de um penhasco. Este ritual ressoa claramente no relato evangélico de como Cristo curou um homem possuído na aldeia dos gadarenos, ordenando aos demônios que saíssem dele e habitassem uma manada de porcos próxima. Os demônios obedeceram, e então o rebanho correu em direção ao precipício e caiu no abismo. Neste caso, o papel do bode expiatório foi o de um rebanho de porcos, que assumiu os pecados pelos quais a pessoa possuída sofreu.

Segundo a tradição, um pedaço de lã vermelha era amarrado ao bode para ser enviado ao deserto. O sacerdote do Antigo Testamento arrancava parte dele quando o bode passava pelos portões da cidade e o pendurava à vista de todos. Se Deus aceitasse o sacrifício de purificação, o pano ficaria milagrosamente branco.

É importante notar que o bode expiatório era separado dos animais do sacrifício, que eram considerados puros, e representava um sacrifício especial. O complexo simbolismo do bode expiatório o associou ao anjo caído, Satanás, mas permaneceu inteiramente dentro da estrutura do monoteísmo judaico. No Livro apócrifo de Enoque (Livro de Enoque, capítulo 8:1) Azazel aparece como o nome de um dos “anjos caídos”.

Na Grécia antiga, um rito semelhante era associado à execução ritual de um criminoso que tirava os pecados da comunidade (φαρμακός, κάθαρμα, περίψημα). Nisto podemos provavelmente reconhecer ecos dos antigos cultos de Dionísio (o filósofo francês René Girard baseou seu sistema filosófico em uma análise da figura do bode expiatório). Aqui deve ser enfatizado que o destino final da humanidade no Juízo Final a divide em um sacrifício agradável a Deus (as ovelhas, e não é coincidência que o cordeiro simboliza o próprio Cristo), e aqueles que são removidos, separados, cortados, caídos do rebanho principal (a humanidade). Os bodes não são agradáveis a Deus, não são aceitas por Ele e por isso são rejeitadas — perecem sem deixar rastro no deserto ou caem no abismo.

Podemos lembrar a história dos dois filhos de Adão (a unidade da humanidade), Abel e Caim. O sacrifício de Abel é aceito e o de Caim é rejeitado. A criação de Eva (a divisão da humanidade), a ingestão do fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal (mais uma vez a dualidade oposta à unidade da árvore da vida) e o nascimento de Caim e Abel (a história do primeiro assassinato) são todos protótipos iniciais do fim da história humana, o sacrifício final no Juízo Final.

Assim, no fim do mundo, a dualidade da humanidade, manifesta em sua divisão irreversível, torna-se totalmente explícita, mas implicitamente esta divisão já começa no paraíso.

Tradução: Augusto Fleck