SELVAGERIA OU CIVILIZAÇÃO? O ENCONTRO DO EUROPEU COM OS POVOS INDÍGENAS

O ENCONTRO ENTRE O EUROPEU E O INDÍGENA
A história que orbita a expansão marítima e a chegada dos portugueses no Brasil é bem conhecida. Muito cedo aprendemos que o nosso país foi descoberto em abril de 1500 d.c. por Pedro Álvares Cabral. Boris Fausto, um historiador importante nesse contexto, aprofunda na sua análise os antecedentes e as raízes que possibilitaram tal descoberta, problematizando e contestando se de fato a chegada dos portugueses foi obra do acaso ou se já havia conhecimento anterior do Novo Mundo. Embora tudo indique que a expedição de Cabral se destinasse efetivamente às índias, tendo a descoberta do Brasil sido produzida em virtude das correntes marítimas, não se pode eliminar a probabilidade de navegantes europeus terem frequentado a costa do Brasil antes de 1500 (FAUSTO, 2006). Boris Fausto sobre o que os portugueses encontraram ao desembarcar no Brasil:

Quando os europeus chegaram à terra que viria a ser o Brasil, encontraram uma população ameríndia bastante homogénea em termos culturais e linguísticos, distribuída ao longo da costa e na bacia dos rios Paraná- Paraguai.
Admitida a homogeneidade, podemos distinguir dois grandes blocos subdividindo essa população: os tupis-guaranis e os tapuias. Os tupis- guaranis estendiam-se por quase toda a costa brasileira, desde pelo menos o Ceará até a lagoa dos Patos, no extremo sul. Os tupis também denominados tupinambás dominavam a faixa litorânea do norte até Cananéia, no sul do atual Estado de São Paulo; os guaranis localizavam-se na bacia Paraná-Paraguai e no trecho do litoral entre Cananéia e o extremo sul do que viria a ser o Brasil. Apesar dessa localização geográfica diversa, falamos em um conjunto tupi-guarani, dada a semelhança de cultura e de língua.
Em alguns pontos do litoral, a presença tupi-guarani era interrompida por outros grupos, como os Goitacazes, no foz do rio Paraíba, pelos aimorés no sul da Bahia e no norte do Espírito Santo, pelos tremembés na faixa entre o Ceará e o Maranhão. Essas populações eram chamadas tapuias, uma palavra genérica usada pelos tupis-guaranis para designar índios que falavam outra língua. (FAUSTO, 2006, p. 14.15).

Assim como aborda as dificuldades em analisar a sociedade que aqui se encontrava:

É difícil analisar a sociedade e os costumes indígenas porque se lida com povos com uma cultura muito diferente da nossa, sobre a qual existiram e ainda existem fortes preconceitos. Isto se reflete em maior ou menor grau nos relatos escritos por cronistas, viajantes e padres, especialmente jesuítas.
Existe nesses relatos uma diferenciação entre índios com qualidades positivas e negativas, de acordo com o maior ou menor grau de resistência oposto aos portugueses [...].
Há também falta de dados que não decorre nem da incompreensão nem do preconceito, mas da dificuldade de sua obtenção. Por exemplo, não se sabe quantos índios existiam no território abrangido pelo que é hoje o Brasil e o Paraguai quando os portugueses chegaram ao Novo Mundo, oscilando os cálculos em números tão variados como 2 milhões para todo o território e cerca de 5 milhões só para a Amazônia brasileira. (FAUSTO, 2006, p. 15)

Conforme o antropólogo Darcy Ribeiro, os povos que aqui residiam não poderiam ser denominados propriamente como nações, já que eram na verdade um grande grupo de povos tribais, falando línguas de um mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua e, conforme iam crescendo, se dividindo e se diferenciando (RIBEIRO, 1995). Podemos constatar no trabalho do antropólogo e etnólogo francês Pierre Clastres, no que tange ao modo de vida dos indígenas:

As crónicas da época são unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares [...]. A vida económica desses índios baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtude da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária de difícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola - plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executado pelas mulheres. (CLASTRES, 2017, p. 170)

Ainda assim sociedades indígenas encontradas no Brasil, da mesma forma que muitas outras na América (com exceção das altas culturas do México), América Central e dos Andes, eram tidas como arcaicas. Essa visão se deve ao fato de que nestas sociedades se ignorava a escrita, além de estarem estruturadas em um complexo e estranho sistema de poder sob o olhar do europeu, sendo elas basicamente detentoras de modelos económicos de subsistência. Sobre o último aspecto abordado, é relativo a uma sociedade que alimenta seus membros apenas com o que estritamente é necessário, vivendo à mercê do menor acidente natural, sendo uma sociedade incapaz, seja por carência tecnológica ou cultural de produzir excedentes (CI_ASTRES, 2017). Boris Fausto confirma isso quando analisa as práticas desenvolvidas pelos povos que aqui se encontravam, compreendendo como praticantes de uma economia de subsistência e destinada ao consumo próprio, sendo cada aldeia produtora para fins de satisfazer as suas necessidades, havendo poucas trocas de gêneros alimentícios com outras aldeias (FAUSTO, 2006). Este ponto é muitas vezes abordado equivocadamente, vindo a ser analisado posteriormente.
O resultado final desse encontro seria nas palavras de Fausto (2006) uma “verdadeira catástrofe”, tendo havido a preservação de uma mínima herança biológica, social e cultural devido ao isolamento e deslocamento dos indígenas. De modo geral, os indígenas sofreram uma violência cultural, além de epidemias e mortes causadas por este encontro. Mesmo que ainda hoje possamos encontrar resquícios destes povos na formação da sociedade brasileira. A palavra “catástrofe” utilizada por Fausto se deve ao destino que se reservou a estes povos, dentre os milhões de índios que viviam no Brasil na época, se estima que nos dias atuais este número se encontre entre 300 a 350 mil. Conforme Freyre (1966) o indígena perderia a capacidade de desenvolver-se por contra própria, mesmo de elevar-se como povo. Embora tenha se mantido resquícios do que foi um dia, o indígena perdeu naquele momento histórico a sua capacidade construtora da cultura, o seu ritmo. Também a adoção de uma vida concentrada e sedentária, diferente da vida dispersa e nómade, a qual estava o indígena acostumado, seria prejudicial para o seu desenvolvimento. Tudo isso fundamentado na dita superioridade dos povos europeus sobre os indígenas.
DESCONSTRUINDO A CIVILIZAÇÃO
Se faz necessária uma abordagem sobre a compreensão em torno do termo “civilização”, tarefa um tanto ampla e exaustiva, em vista da inexistência de consenso quanto ao que ele representa. A análise mesmo que breve se faz necessária para que possamos dar continuidade ao desenvolvimento do tema proposto. Conforme o trabalho do sociólogo e cientista político russo Aleksandr Dugin, trabalho em que o autor nos apresenta múltiplas visões em torno da questão, pode-se compreender civilização como o estágio de desenvolvimento de uma sociedade, atribuindo-lhe também um sentido propriamente territorial ou identificando-o como conceito de cultura, por exemplo (DUGIN, 2012).
Lidar com as definições de ‘civilização’ em seus aspectos intelectuais, científicos e sociais parece ser impossível. No entanto, acontece o mesmo com vários termos fundamentais. Isso decorre do sentido fundamental da nossa época, o período de transição do Moderno ao Pós-Moderno, afetando alguns campos semânticos e formas linguísticas. E uma vez que estamos em um período de transição incompleta - há uma grande confusão de termos: alguns interpretam os termos básicos de acordo com seu sentido histórico original, alguns já olham para o futuro, sentindo a necessidade de mudanças semânticas (que ainda não chegaram), alguns sonham (e podem se aproximar do futuro ou simplesmente entregar-se a alucinações individualistas irrelevantes), alguns estão simplesmente confusos.
Enfim, para o uso correto dos termos (especialmente os principais) incluindo o termo ‘civilização’, hoje em dia é necessário fazer uma simples desconstrução que criaria significados de acordo com sua perspectiva histórica e examinar algumas mudanças semânticas. (DUGIN, 2012, p. 149)
Quando analisamos o encontro entre o europeu e o indígena frequentemente temos a compreensão do encontro de um povo tido como “civilizado” com outro tido como “selvagem”, por vezes também podendo utilizar o termo “bárbaro” ou “primitivo”, ou ainda o que melhor definiria: o encontro de um povo superior com um povo inferior. Erroneamente é esta compreensão que se tem, quando se fala a respeito. Costumeiramente idealizamos um modelo como universal e superior, sob os quais todos os demais deveriam se sujeitar, por assim dizer. O intuito é romper essa ideia em virtude de que tal pensamento, essa universalidade inclusiva, que na prática é exclusiva, faz com que desconsideremos o que nos é diverso. Sobre uma suposta universalidade de uma determinada civilização, Dugin nos fala:

[...] a alegação de universalidade da civilização - ecúmene e assim, singular - constantemente se depara com o fato de que, além dos povos "bárbaros", além das fronteiras dessa ‘civilização’ existiam outras civilizações com sua própria e excelente versão de ‘universalismo’. Neste caso, havia uma contradição lógica: ou a ‘civilização’ tinha que admitir que a alegação de universalidade é insolvente, ou listar outras civilizações na categoria da barbárie.
Com o reconhecimento da insolvência podem surgir diferentes soluções: ou tentar encontrar um modelo sincrético combinando as duas civilizações (ao menos teoricamente) no sistema como um todo, ou tomar da outra civilização aquilo que é certo. Tipicamente, quando confrontada por problema, a ‘civilização’ vem na base de um princípio exclusivo (não inclusivo) - considerando a outra civilização como defeituosa, ‘bárbara’, ‘herética’, ‘particularista’. Em outras palavras, estamos lidando com a mudança do costumeiro etnocentrismo tribal para um nível superior de generalização. Inclusão e universalismo, de fato, resultam em exclusão do ‘selvagem’ e em particularidade. (DUGIN, 2012, p. 154)

Sob uma base histórica, Dugin continua a análise em torno do tema através de exemplos:

[...] os gregos, que se consideravam como ‘civilização’, se referiam ao resto como ‘bárbaros’. A origem da palavra ‘bárbaro’ é uma descrição de alguém cuja fala não faz sentido e é uma coleção de sons animalescos. Muitas tribos adotaram atitude similar para com os estranhos - não conhecendo sua língua, pensa-se que eles não a têm, logo não os consideram como seres humanos. Assim, por sinal, as tribos eslavas eram chamadas ‘os germanos’ ou ‘burros’, pois não sabiam a língua russa.
Os antigos persas com a reivindicação de civilização para a religião universal mazdeana, expressaram isso ainda mais claramente: a divisão de Iran (povo) e Turan (demónios) foi estabelecida no nível das religiões, cultos, rituais e ética. Chegou-se ao ponto de conexões endógamas absolutas e à normalização do incesto - mas o espírito solar dos Iranianos (Ahura Mazda) não foi profanado pela mistura com os filhos de Angra Manyu.
O Judaísmo como religião global que reivindica universalismo e fundou a base teológica do monoteísmo - o Cristianismo e o Islã construíram várias civilizações simultaneamente - até hoje é praticamente restrita a nível étnico e ao código tribal da ‘Halacha’.
Tribos são baseadas na iniciação, durante a qual o neófito é informado sobre a base da mitologia tribal. No nível da civilização, a mesma função é realizada pelas instituições religiosas e em tempos mais recentes - por um sistema de educação universal, claramente ideológico. Os mitos aprendidos pelos neófitos modernos estão em circunstâncias diferentes e outros contextos, mas seu significado funcional continua o mesmo e a validade lógica (dada a análise freudiana das atividades repressivas do intelecto e do ego) não está muito longe das lendas.
Resumidamente, até uma rude desconstrução da ‘civilização’ mostra que a alegação de superação das fases prévias não é mais que numa ilusão e que grandes e "desenvolvidos" grupos de pessoas unidas na ‘civilização’ atualmente repetem o comportamento e sistema de valores dos ‘selvagens’ [...]. Desenvolvendo a ideia de ‘bom selvagem’ de Rousseau (que criticou fortemente a civilização como fenômeno e considerava-a como sendo fonte de todo mal), podemos dizer que o assim chamado ‘homem civilizado’ é um ‘selvagem feio’, um ‘bárbaro’ corrompido e pervertido. (DUGIN, 2012, p. 154, 155)

O questionamento e a problematização em questão é: poderíamos definir o indígena como sendo inferior, ou selvagem, comparado ao europeu? Estaria o indígena em um estágio de desenvolvimento atrasado? Conforme o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss constatamos que dentro de uma estrutura antropológica não podemos ver os povos rotulados “primitivos” como inferiores. Podemos, porém, considerá-los diferentes, membros de sociedades diferentes, não melhores ou piores. É urgente compreender que sociedades por mais diferentes que sejam não representam uma fase superior ou inferior. São, sim, construídas sobre outras fundações e valores (LÉVI-STRAUSS, 2012). Para Dugin (2012), Lévi-Strauss demonstrou em seu trabalho que os tidos “selvagens” ou “primitivos”, pensam da mesma maneira que os tidos como “superiores”, apenas tendo sua taxonomia construída diferentemente, tendo uma lógica entre eles, podendo ser inclusive mais refinada. Prova também que diferente da ideia de Lévy-Bruhl e de cientistas evolucionários, a ideia de uma “lógica inicial” não existe, podendo uma estrutura de mitos indígenas ser tão complexa quanto as formas culturais familiares aos europeus. Não há apenas um “logos inicial”, e, sim, outro logos, o qual faz com que nos deparemos com um sistema de relações, nuances, reconhecimentos, diversidades e modelos de construção, que funcionam dentro de outro sistema de hipóteses, com sua estrutura análoga a de povos ditos desenvolvidos, que são construídas através de “recursos lexicais diferentes”, não sendo constantes seus elementos, mas em suas relações. Conforme Lévi-Strauss (2012) há uma visão um tanto equivocada, que perdurou por muito tempo em vista de preconceitos, baseada na simplicidade e muitas vezes na grosseria existente entre os povos ditos “primitivos”, desviando os etnólogos de uma interpretação correta sobre os sistemas de classificações conscientes, complexos e coerentes que são existentes nestes povos. Lévi-Strauss considera necessário superar a imagem tradicional que se faz destes povos, não podendo compreendê-los como recém-saídos da condição animal. Encontramos em muitos povos primitivos exercícios de especulação muito próximos daqueles dos naturalistas e herméticos da Antiguidade e da Idade Média. Sobre a lógica destes povos:

É provável que o número, a natureza e a ‘qualidade’ desses eixos lógicos não sejam os mesmos, segundo as culturas, e que se poderia classifica-las em mais ricas e em mais pobres a partir das propriedades formais dos sistemas de referência que demandam para construir suas estruturas de classificação. Todavia, mesmo as menos dotadas sob esse aspecto operam com lógicas de várias dimensões, cujo inventário, análise e interpretação exigiriam uma riqueza de informações etnográficas e gerais que muitas vezes nos faltam. (LÉVI-STRAUSS, 2012, P. 81)

Embora hoje se compreenda melhor a lógica do “outro” e possamos olhar com uma olhar mais crítico e mais justo para os povos ditos “primitivos”, é necessário compreender um pouco o que fundamentava o pensamento que pairava na mente do europeu quando deparou-se com o indígena, o que fundamentava essa hierarquização que ele criava.

O PENSAMENTO HIERÁRQUICO RACISTA

Esta relação superior e inferior pode ser definida como um pensamento hierárquico racista, algo recorrente ao longo da história, manifestado de diversas formas. A partir do trabalho do historiador português Francisco Bethencourt, podemos constatar que o racismo é relacional e sofre alterações com o tempo, não podendo ser analisado em sua totalidade através de um simples conceito, na
verdade representando a definição de um racismo que se seguiu em períodos temporais, de regiões específicas ou de vítimas recorrentes. Além de levar em conta que ele assumiu ao longo da história, diferentes formas, moldadas por conjunturas específicas. O racismo pode vir a ser mais bem entendido a partir de abordagens políticas e sociais, levando em conta que mesmo que estejamos falando de um racismo étnico, ele ainda estará associado e motivado por projetos políticos e ligado a condições económicas específicas (BETHENCOURT, 2018). No trabalho conjunto dos franceses, o filósofo Alain de Benoist e o jornalista e ensaísta Charles Champetier a questão do racismo também é analisada:

[...] o racismo é uma teoria que postula, por uma parte, que existe uma desigualdade qualitativa entre as raças, podendo-se distinguir as raças globalmente ‘superiores’ e ‘inferiores’, ou, por outro lado, que o valor de um indivíduo se deduz inteiramente a sua pertença racial, ou ainda, que o fator racial constitui o elemento explicativo central da história humana. [...]. O racismo não é uma doença da mente, engendrada pelo preconceito ou superstição ‘pré-moderna’ (fábula liberal que atribui à irracionalidade a fonte de todo o mal social). Esta é uma doutrina errada, historicamente datada, que encontra a sua origem no positivismo científico, segundo o qual pode- se ‘cientificamente’ medir absolutamente o valor das sociedades humanas, e do evolucionismo social, que tende a descrever a história da humanidade como uma unidade histórica unitária dividida em ‘fases’ correspondentes às diferentes etapas do ‘progresso’ (alguns povos estariam temporariamente ou permanentemente, mais ‘avançados’ que outros). (BENOIST; CHAMPETIER, 2014, p. 47)

Através de Dugin (2012) podemos compreender o racismo como algo fundamentado na crença da superioridade objetiva inata de uma raça humana sobre outra. O autor além de analisar o racismo como costumeiramente conhecemos, o mais óbvio, sendo fundamentado pelo aspecto biológico, também analisa a sua manifestação em outras formas, as quais ele define como:

[...] racismo cultural (afirmar que há culturas superiores e inferiores), civilizacional (dividir os povos entre aqueles civilizados e os insuficientemente civilizados), tecnológico (ver o desenvolvimento tecnológico como o principal critério de valor societário), social (afirmar, no espírito da doutrina protestante de predestinação, que os ricos são melhores e superiores quando comparados com os pobres), racismo económico (em cuja base toda a humanidade é hierarquizada segundo regiões de bem-estar material) e racismo evolucionário (para o qual é axiomático que a sociedade humana é o resultado de um desenvolvimento biológico, na qual os processos básicos de evolução das espécies - sobrevivência dos mais aptos, seleção natural, etc. - continuam hoje). (DUGIN, 2012, p. 46)

O encontro entre o europeu e o indígena baseia-se nessa lógica, em uma hierarquização racista, seja, fundamentando-se em Dugin (2012), em sua forma biológica, cultural, civilizacional ou mesmo evolucionária. Os europeus equipararam sua história e valores à lei universal, buscando artificialmente impô-las aos indígenas, ignorando que são valores locais e historicamente específicos. O resultado, conforme abordado anteriormente em Freyre (1966) e Fausto (2006), pode vir a ser caracterizado conforme Benoist (2015), com o que ele define como um processo de “desculturalização”, que ocorre justamente quando negamos ou não consideramos as identidades específicas do “outro”. Em outro trabalho, Benoist (2010) também compreende que este processo pode vir a ser entendido como um genocídio, no sentido de aniquilação no âmbito sociocultural, tendo em vista a destruição das bases da vida de determinada população, através da desintegração dos fundamentos específicos de suas crenças, seus valores sociais, culturais e morais.
A lógica que fundamentou o encontro entre povos tão distintos, fez com que determinadas características e saberes dos povos indígenas fossem negadas, limitando também as contribuições que tais povos deixariam na construção da sociedade brasileira. Essas, embora estejam presentes, não são tantas quanto poderiam ter sido e nem mesmo se encontram presentes em sua essência. Ainda assim, o que nos foi deixado ou mesmo negado ao longo da história é digno de análise.
 

POVOS INDÍGENAS: CARACTERÍSTICAS, SABERES E CONTRIBUIÇÕES

Observamos em Freyre (1966) que diversos povos tidos como desenvolvidos: ingleses, franceses, holandeses, sucumbiriam e perderiam a energia colonizadora em virtude do clima e do solo que se apresentava no Brasil. Os próprios portugueses, apesar de se adaptarem melhor que outros povos europeus, tiveram considerável dificuldade no estabelecimento e desenvolvimento de sua colónia. Sobre o ambiente que se apresentava:

[...] clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente ao europeu, por não permitir nem a prática de sua lavoura tradicional regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado. (FREYRE, 1966, p. 19)

Complementando mais um pouco:

Tudo era desequilíbrio. Grandes excessos e grandes deficiências, as da nova terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta ou roxa, de excepcional fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar nele tudo o que se quisesse, do entusiasmo do primeiro cronista. Em grande parte rebelde à disciplina agrícola. Áspero, intratável, impermeável. Os rios, outros inimigos da regularidade do esforço agrícola e da estabilidade da vida de família. Enchentes mortíferas e secas esterilizantes - tal o regime de suas águas. E pelas terras e matagais de tão difícil cultura como pelos rios quase impossíveis de ser aproveitados economicamente na lavoura, na indústria ou no transporte regular de produtos agrícolas - viveiros de larvas multidões de insetos e de vermes nocivos. (FREYRE, 1966, p. 20, 21)

O indígena aqui se desenvolvia e vivia a seu modo, não sucumbindo às adversidades que se apresentavam. O indígena era portador de uma adaptabilidade que povos tidos como desenvolvidos não obtinham. Ainda dentro deste contexto, podemos analisar como o indígena se relacionava com as espécies que se encontravam no mesmo ambiente. Freyre (1966) elucida muito bem a questão, nos apresentando uma intimidade interessante, quase “lírica”, na qual os animais não se encontram ali para fins de servir-lhes como alimento ou energia para o trabalho doméstico e agrícola, muito menos para fins ritualísticos. Conforme aborda:
Teodoro Sampaio, que pelo estudo da língua tupi tanto chegou a desvendar da vida íntima dos indígenas do Brasil, afirma que em torno à habitação selvagem e ‘invadindo-a mesmo com a máxima familiaridade, desenvolvia- se todo um mundo de animais domesticados, a que chamavam mimbadá. Mas eram todos animais antes de convívio e de estimação do que de uso ou serviço: ‘Aves de formosa plumagem, como o guará, a arara, o Canindé, o tucano, grande número de perdizes (ianhambi ou iambu), urus e patos (ipeca), animais como macaco, o quati, a irara, o veado, o gato (pichana) e até cobras mansas se encontravam no mais íntimo convívio’.

Havia entre os ameríndios desta parte do continente, como entre os povos primitivos em geral, certa fraternidade entre o homem e o animal, certo lirismo mesmo nas relações entre os dois. (FREYRE, 1966, p. 138)
A descrição acima possibilita ver que o indígena se caracterizava por ser um povo que não somente sobrevivia e se adaptava a um ambiente repleto de adversidades, mas que mantinha, dentro das possibilidades, uma relação harmoniosa com o meio ambiente e as espécies que ali vivam. Certamente essa relação com o meio no qual está inserido pode estar interligada ao modo de vida no que tange à “economia de subsistência”, a qual foi abordada anteriormente. Sua cultura no que se refere a isso, conforme Fausto (2006), era incompatível com a cultura dos povos europeus. Erroneamente os indígenas eram taxados de vadios ou preguiçosos, ignorando sua visão de mundo e que a relação do indígena com o ambiente no qual estava inserido não necessitava de um trabalho contínuo e intensivo. Assim, o indígena dedicava seu tempo e sua energia em outras atividades. Pierre Clastres aborda esta questão:

Existe um preconceito tenaz, curiosamente coextensivo à ideia contraditória e não menos corrente de que o selvagem é preguiçoso. Se em nossa linguagem popular diz-se ‘trabalhar como um negro’, na América do Sul, por outro lado diz-se ‘vagabundo como um índio'. Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, americanas e outras, vive uma economia de subsistência e passa quase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. (CLASTRES, 2017, p. 169)

Como podemos constatar no trabalho de Clastres (2017) a verdade é que o indígena vivia uma vida saudável, com abundância de alimentos, onde considerável parte da população dedicava pouco tempo ao trabalho propriamente dito, dedicando- se mais aos momentos de lazer e prazer, como, por exemplo, a pesca, caça, ritos e festas. Se analisarmos a obra de Freyre (1966) veremos que enquanto isso na Europa, boa parte da população vivia em situações complicadas no que se refere às condições básicas de vida, sobrevivendo sob uma alimentação extremamente precária em muitos casos. Retomando Clastres (2017) verificamos que a economia de subsistência não implica uma incansável e angustiosa busca por alimento, mas uma considerável limitação do tempo dedicado às atividades produtivas, o que, com certeza, em meio à lógica do europeu seria estranho. Não se deve compreender a organização económica de tais sociedades como um defeito ou uma incapacidade, mas, uma recusa de um excesso inútil. O autor, inclusive, questiona para que serviria ou ainda qual seria a utilidade do excedente obtido se dedicado mais tempo ao trabalho produtivo? Ou mesmo por qual razão trabalhar e produzir mais, se o tempo que dedicavam a isso já era suficiente para garantir-lhes as necessidades do grupo?
No trabalho de Clastres (2017) vemos que muitos povos que se encontravam no continente recusavam a desigualdade social, criando mecanismos que impediam o surgimento de hierarquias opressoras, algo que impressionaria os primeiros viajantes do Brasil e os etnógrafos. Curiosamente a ausência quase completa da autoridade era a propriedade mais notável do chefe indígena, a função política muito fracamente diferenciada. Conforme analisa:

[...] citemos por exemplo o que diziam os primeiros descobridores do Brasil a respeito dos índios Tupinambá: ‘gentes sem fé, sem lei, sem rei’. Seus mburuvicha, seus chefes, não possuíam com efeito nenhum ‘poder’. O que haveria de mais estranho, para pessoas saídas de sociedades onde a autoridade culminava nas monarquias absolutas da França, de Portugal ou Espanha? Tratava-se de bárbaros que não viviam em sociedade policiada. (CLASTRES, 2017, p. 30)

Se fossemos de fato adotar a relação superior e inferior, poderíamos questionar se o indígena não seria o povo dito superior, em virtude de tudo que abordamos até então. Apesar de não ter desbravado os mares, pode-se levantar a questão: quem seriam os selvagens?
No âmbito moral podemos fazer uma análise muito interessante, conforme o pesquisador Domingos Magarinos, que assina sob o pseudónimo Epiága, podemos falar de uma “superioridade moral” dos povos que aqui se encontravam, apresentando também em seu trabalho analogias:

Dedicados, destemidos, fortes, honestos e tão leais que, apesar de todas as traições de que foram constantemente vítimas, nunca pensaram em trair os seus inimigos, os seus inexoráveis e crudelíssimos algozes [...].
Um sagrado decálogo, um inviolável código da mais severa e rígida moral, inspirava-lhes os atos individuais ou coletivos, por mais vulgares ou insignificantes, por mais extraordinários ou prodigiosos.
A deslealdade, a traição entre eles, era um delito nefando, o ato mais abominável desde mundo. Assim, a calúnia, a mentira, o furto, o roubo, o assassínio, o adultério. A covardia e a embriaguez eram, também, punidas. Severamente punidas. (EPIÁGA, 2005, p. 78)

Conforme aborda em seu trabalho:

Não podem ser considerados irracionais homens que possuíam e externavam concepções religiosas tão elevadas. Seres que professavam crenças análogas, pela sua transcendência, as que elevaram ao fastígio da evolução humana os indianos, os egípcios, os gregos e os romanos, povos cuja cultura e civilização ninguém contesta [...].

Acreditavam em Deus. Acreditavam na existência e imortalidade do Espírito. Tinham conhecimentos esotéricos e praticavam os Mistérios Sagrados e os Mistérios Solares da mesma maneira que os povos mais cultos e civilizados da Antiguidade. (EPIÁGA, 2005, p.77)

Fundamentando-se no trabalho do antropólogo alemão Cari Friedrich Philipp von Martius, Epiága (2005) também nos mostra que, em vista de tudo que se pôde observar, pode-se inclusive crer que os povos que aqui se encontravam poderiam consideravelmente ser oriundos de povos antiquíssimos, em uma de suas últimas etapas de involução:

[...] Um povo que, depois de atingir o apogeu de uma cultura e de uma civilização, idênticas ou semelhantes às dos maias ou dos quíchuas, em consequência de fenômenos cósmicos e biológicos, sociológicos e patogênicos, abalos físicos e psíquicos, baixou, como baixaram, mais tarde, outros povos asiáticos e africanos, e baixarão outros povos da Europa, ao perigeu de incontestável decadência, a selvageria a que se referem os missionários e os conquistadores que se ocuparam do assunto.
A transcendência e a sublimidade de suas concepções - crenças religiosas, conhecimentos esotéricos, folk-lore, etc. - em contraste, em absoluto contraste com as suas condições sociais, no período da famosa descoberta; o fato de colocarem a força mental em plano superior à força física, como se deduz das lendas zoológicas do yaúty (jaboty)\ a língua polissilábica, metafórica, poética, erudita, que ainda falavam; os exemplares de suas indústrias, de suas artes, muito mais perfeitos nas camadas geológicas inferiores do que os encontrados em camadas superiores, como aconteceu em Marajó e outras localidades do país; o esquecimento do alfabeto fonético que inventaram, adotaram e são documento objetivo, as inscrições lapidares nos rochedos de todo o território nacional; as constantes alusões à sabedoria dos velhos - a Tuyabaé-Cuaá, a que se referem os próprios jesuítas - e, portanto, o testemunho da evidente existência de antepassados mais cultos e mais evoluídos, tudo, em suma, induz a concordar in totum com as asserções, o lógico e verídico parecer do eminente sábio alemão, um dos povos estrangeiros que libertos do convencionalismo cientifico europeu, souberam ver e disseram o que viram, realmente no Brasil. (EPIÁGA, 2005, p. 67)

É importante destacar que essa involução seria acrescida da degradação moral, oriunda do contato com o europeu, abordado anteriormente em Fausto (2006) e Freyre (1966). Em nova analogia, Epiága (2005) nos mostra uma relação no que envolve o método de interpretação de sonhos e o uso de certas bebidas e essências para desenvolvimento de determinadas faculdades:

Os payés e os mborubicháb (tubichá, tuxaba ou tubichab), antes de qualquer deliberação, procuravam ouvir os indivíduos mais conceituados da tribo a respeito dos sonhos que revelassem qualquer conexão com a medida a ser adotada. Todos eram chamados a narrar o que tinham ouvido ou visto enquanto dormiam e, de conformidade com essas narrações, as providências seriam executadas.
Quem, ao menos, passou os olhos pelas páginas de qualquer compêndio de História da Civilização, não pode ignorar a influência da interpretação dos sonhos (oniromancia) e outros processos de adivinhação na vida individual e coletiva dos povos mais cultos da Antiguidade.
Qual foi o monarca, o imperador, o general grego, romano, gaulês ou germânico, que tomou qualquer resolução, isto é, decretou uma lei ou iniciou um combate antes de consultar o oráculo, o áugure, a pitonisa?
Como os indianos, os egípcios, os gregos, os romanos - os povos da mais remota antiguidade -, conheciam os efeitos inebriantes ou hipnóticos de certas bebidas e queimavam essências e resinas que tinham idênticas influências, a fim de aumentar as faculdades dos que se prestavam a essas pesquisas oniromânticas. (EPIÁGA, 2005, p. 82, 83).

Os conhecimentos indígenas, em Freyre (1966), poderiam ter sido de muito proveito se não fosse o olhar preconceituoso do europeu. Conhecimentos estes pouco aproveitados naquele momento. Entre eles uma longa lista de plantas e ervas medicinais. Indo mais além, partindo para outra análise, percebemos em Freyre, que através da mulher indígena se enriqueceu a vida no Brasil, trazendo reflexos, como podemos ver, até os dias atuais:

Por seu intermédio enriqueceu-se a vida no Brasil, como adiante veremos, de uma série de alimentos ainda hoje em uso, de drogas e remédios caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança, de um conjunto de utensílios de cozinha, de processos de higiene tropical - inclusive o banho frequente ou pelo menos diário, que tanto deve ter escandalizado o europeu porcalhão do século XVI.
Ela nos deu ainda a rede em que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro; o óleo de coco para o cabelo das mulheres; um grupo de animais domésticos amansados pelas suas mãos.
Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós. (FREYRE, 1966, p. 132)

Um exemplo de estranhamento do europeu foi o banho frequente e diário, prática que até hoje adotamos. De acordo com Epiága (2005) os indígenas banhavam-se mais de uma vez por dia, ato condenável aos olhos dos colonizadores. No que tange a higiene, se verificava que as ocas nas quais os indígenas viviam eram geralmente arejadas e muito limpas. Certamente uma considerável colaboração para os hábitos atuais. Em um comparativo, Freyre (1966) evidencia a surpresa de portugueses e franceses, estes acostumados com um baixo padrão de higiene, ao se depararem com um povo livre de determinadas doenças comuns ao europeu, e com o hábito de banhar-se no rio. Ainda em seu trabalho, vemos contribuição fundamental do indígena colaborando na conquista dos sertões, servindo como guia, canoeiro, guerreiro, caçador e pescador. Também se aproveitou de tais processos e conhecimentos em torno da agricultura. Freyre aborda uma vasta colaboração no que se refere a alimentação, a rica culinária nacional com a contribuição indígena. Interessante é o uso da mandioca, que se tornou a base do regime alimentar do colonizador, sendo ainda hoje alimento fundamental do brasileiro. Apesar de parecer uma contribuição simples destaca-se, conforme Ribeiro (1995), o quanto o seu domínio representa uma façanha extraordinária, em vista de ser uma planta venenosa, sendo necessário não somente cultivar, mas torná-la comestível, extraindo dela o ácido cianídrico. Em torno do uso da mandioca, escreve Freyre:
Variado era o uso da mandioca na culinária indígena; e muitos dos produtos preparações outrora pelas mãos avermelhadas da cunhã, preparam-nos hoje as mãos brancas, pardas, pretas e morenas da brasileira de todas as origens e de todos os sangues. Da índia a brasileira aprendeu a fazer de mandioca uma série de delicados quitutes: a farinha fina, de curimã, para o filho pequeno; o mingau; o mbeiu ou beiju. ‘Conheciam’, escreve Couto de Magalhães dos indígenas do Brasil, ‘processos de fermentação pelos quais preparavam excelentes conservas alimentares para estômagos enfraquecidos; entre outros, citarei os bolos de ‘carimã’, com os quais todos nós fomos alimentados durante o período da nossa infância. (FREYRE, 1966, p. 169, 170)
Conforme constatamos no trabalho da historiadora Mary del Priore, os europeus desde sua chegada foram favorecidos pela elaborada agricultura e conhecimentos dos habitantes locais. Além da citada mandioca, a batata-doce, as abóboras, o milho e o mel das abelhas selvagens eram exemplos de itens que faziam parte do cardápio que manteria os europeus, tornando-se dependentes das culturas e saberes indígenas (PRIORE, 2016). Sobre a riqueza aqui encontrada e usufruída pelo europeu:

Até então desconhecidas dos europeus, frutas como araçá, cajá, gabiroba, ingá, jabuticaba, jatobá, pequi, pitanga e umbu - somente para citar alguns exemplos - deliciavam. Mais importantes ainda eram as palmeiras. Desde o começo da invasão colonizadora, os portugueses ficaram maravilhados com os múltiplos usos dessa planta. Existiam vinte espécies conhecidas. Delas era extraído o palmito, alimento consumido não somente nas aldeias, mas também nos momentos de caça e de guerra, quando era necessário adentrar na floresta. As palmeiras também forneciam diversos tipos de frutas destinadas à fabricação de óleos, empregados na preparação de alimentos e medicamentos. Uma vez amassadas e fervidas, elas eram transformadas em um pó de coloração castanha, que por sua vez era regularmente consumido como sal. Das folhas da palmeira produzia-se a matéria-prima para forrar o teto e as paredes das cabanas. O mesmo material permitia a fabricação de cestos. Das fibras do broto eram elaboradas cordas. Das palmeiras que possuíam casca espinhosa, fabricavam-se não só ornamentos como também raladores de mandioca. (PRIORE, 2016, p. 24)

Vemos em Freyre (1966) que muitos dos utensílios com alguma utilização na culinária eram feitas pelas próprias mãos indígenas, utensílios que viriam ser incorporados na cozinha colonial. Ainda hoje no Norte ou do Centro do Brasil numerosas peças de origem puramente indígena podem ser encontradas. Também viria dos indígenas com a adaptação por parte do colonizador europeu, o conhecimento de várias fibras que serviriam para tecelagem ou entrançado. Além disso, fundamentado tanto em Freyre (1966) como em Ribeiro (1995), notamos que através dos ritos e mitos os indígenas orientavam os mais novos no sentido do comportamento tradicional da tribo, sujeitando-os indiretamente a autoridade dos mais velhos, através dos quais aprendiam muito no âmbito da educação moral e técnica, preparando-os para suas responsabilidades. Podemos falar até mesmo de uma espécie de pedagogia moralizadora.
O que foi abordado, embora reconhecidamente seja pouco comparado com toda a contribuição e todo saber dos indígenas, possibilita que façamos um desenho de um povo, que diferentemente do que erroneamente se julgou na época, não tinha nada de inferior, mas que era unicamente diferente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível atingir análises bem interessantes ao final deste artigo: em um primeiro momento compreender com o que o colonizador europeu se deparou quando chegou ao Brasil. Sobre quem foi o “outro” com quem ficou frente a frente. O destino do indígena brasileiro é bem sabido, sendo possível aqui compreender a mentalidade que dominava o europeu nesse encontro, que fundamentou as suas ações e seu sentimento de superioridade. A partir disso foi possível desconstruir o que se entende por “civilização”. Mais propriamente quebrar essa ideia de hierarquização, a partir da qual compreendemos um povo ou cultura como superior ou inferior, infelizmente ideia ainda fortemente difundida na atualidade. Por fim, traz- se aqui um pouco das características, saberes e contribuições dos indígenas que se encontravam nas terras brasileiras, mesmo que atualmente se apresentem de formas distintas do que foram na época do descobrimento do Brasil. É evidente que suposta tarefa necessitaria de amplo trabalho. Não se pode generalizar os indígenas que aqui se encontravam, muito menos resumir em poucas páginas o seu rico conhecimento e contribuições, ainda assim, foi possível proporcionar um bom desenho do que de valioso e interessante foi deixado para o desenvolvimento da sociedade brasileira. Acima de tudo foi possível indagar: o indígena seria, então, o selvagem em meio a este encontro?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira: volume 1: colónia. Rio de Janeiro: Editora LeYa, 2016.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2a ed. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995.