Uma Leitura Ôntico-ontológica do Dasein como Principal Sujeito Histórico da Quarta Teoria Política: uma Resposta a Álvaro Hauschild

Em primoroso artigo intitulado Da Natureza do Tempo [1], que rendeu uma publicação em seu blog Forças da Angústia, Álvaro Hauschild inaugurou um contraponto relativamente à concepção por mim sufragada em A Ciclicidade do Tempo Histórico sob o Prisma do Neoeurasianismo da Quarta Teoria Política, de acordo com a qual as civilizações modernas, ao contrário das sociedades pré-históricas, possuem um caráter eminentemente linear, sendo a este último reputado a causa do seu colapso iminente. Sustentei, com base na Quarta Teoria Política, que a adoção de uma compreensão cíclica do tempo histórico poderia constituir uma maneira eficaz de driblarmos este colapso em um mundo que evolui em ritmo alucinante, e que, por isto mesmo, perdeu controle sobre o desenrolar de seu próprio processo evolutivo. 
 
Hauschild, a outro giro, recorreu à ontologia heideggeriana para provar que a natureza metafísica (a-civilizacional) do tempo coloca em xeque o dualismo ôntico: ciclicidade/linearidade, tornando impossível, ou, pelo menos, inviável, compreender o fenômeno temporal como um desdobramento contínuo através de linhas ou ciclos de historicidade. Isso, nas palavras de Hauschild, “aniquila a concepção de tempo histórico”, seja ela circular ou unidirecional.  Afinal, o Dasein (Ser-Aí) é, em Heidegger, o sentido existencial do eterno retorno, algo que vai se construindo a si mesmo genuína e eventicamente, é dizer: sem um início e fim prefixados. Hauschild traça ainda um paralelo entre o Dasein (o estar jogado aí no mundo) e a metáfora nietzschiana que descreve o homem como uma corda entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo.  
 
Meu referencial teórico nesta réplica continua sendo a Quarta Teoria Política do professor Alexandr Dugin, desta vez centrada no Dasein (o macro-sujeito sócio-político da referia teoria), em respeito à delimitação do objeto da querela ora entabulada. Ademais, cumpre assinalar, preambularmente, que não atacaremos o mérito da natureza temporal (qualitativa/quantitativa) da escatologia cristocêntrica, uma vez que, no que concerne a este tópico, endossamos cada palavra de Hauschild e até incentivamos aprofundamentos subsequentes, dado o interesse de possíveis neófitos pela matéria.
 
De introito, calha descrever o entendimento duginiano acerca do “sujeito composto” da Quarta Teoria Política, qual seja: o Dasein. O Dasein surge, para os escopos da Quarta Teoria Política, como a negação geral das concepções individualizantes dos agentes históricos das três teorias políticas clássicas (liberalismo, marxismo-leninismo e nazi-fascismo), cujos sujeitos são, respectivamente: o indivíduo, a classe social e o Estado-raça. Distintamente de tais abordagens dogmáticas, atômicas e isoladas, o Dasein oportuniza uma espécie de recomposição holística de escalas de temporalidade, em negação explícita à tese que coloca os três êxtases do tempo (passado, presente e futuro) em uma relação hierárquica, verticalizada. Nos dizeres de Dugin: 
 
“A Quarta Teoria Politica constrói e reconstrói a sociedade por trás dos axiomas modernos. Por isso os elementos das diferentes formas politicas podem ser usados na 4a Teoria Politica sem nenhuma conexão com a escala de tempo. Não há fases nem épocas - mas apenas preconceitos e conceitos. Nesse contexto, construções teológicas, antiguidades, castas e outros aspectos da sociedade tradicional são apenas uma das variantes possíveis; juntamente com o socialismo, a teoria keynesiana, mercados livres, democracia parlamentar, ou "nacionalismo". Elas são apenas formas, mas não estariam relacionadas com a topografia implícita do 'tempo histórico objetivo'. Não há tal coisa! Se o tempo é histórico, ele não pode ser objetivo. O Dasein diz o mesmo. O Dasein é o sujeito da 4a Teoria Politica. O Dasein pode ser recuperado pelo refinamento da verdade existencial da superestrutura ontológica. Dasein e algo que institucionaliza o tempo. Durand institucionaliza o tempo pelo Traiectum em sua topografia. Traiectum/Dasein não é uma função do tempo, mas o tempo é uma função do Traiectum/Dasein. Por isso o tempo é algo institucionalizado pela política no contexto da Quarta Teoria Politica. Tempo é uma categoria política. A política do tempo é um pré-conceito da forma politica. A Quarta Teoria Politica abriu uma perspectiva única: se nós compreendemos o principio da reversibilidade do tempo, nós não somente somos capazes de compor o projeto de uma futura sociedade, mas somos capazes de compor toda uma gama de projetos de diferentes sociedades futuras. Assim nós seriamos capazes de sugerir algumas estratégias não lineares para uma nova institucionalização do mundo”. (DUGIN, A Quarta Teoria Política, pgs. 75 e 76)
 
Impossível deixar de notar que a mencionada função de institucionalização do tempo histórico desempenhada pelo Dasein atua, ainda que de maneira bastante residual e contingente, sobre o espectro civilizacional – senão não haveria sequer o que ser institucionalizado politicamente -, sobretudo se considerarmos que, na concepção duginiana, o coeficiente espacial e geopolítico do Dasein é sucedâneo da inclusão deste último em um novo círculo hermenêutico-filosófico vocacionado para o desvelamento de um pretenso Quarto Nomos da Terra de Carl Schmitt (a este respeito, remeto o leitor ao artigo de minha autoria O Horizonte Cósmico de Possibilidades da Quarta Teoria Política Rumo à Superação da Pós-Modernidade, publicado, originalmente, no blog Legio Victrix e traduzido para o espanhol pela 4TPes, pela Página Transversal e pela Elespiadigital [2]). 
 
Obviamente não queremos dizer com isto que a ontologia heideggeriana agrega no Dasein um matiz civilizatório, até mesmo porque, em Heidegger, o sentido do ser intramundano é buscado no horizonte de temporalidade mediana da pré-sença (pré-sença esta na qual a espacialidade é inerente, anterior ao espaço métrico ou geofísico) é dizer, fora da moldura estético-transcendental kantiana, que compreende o espaço [intuição externa] e o tempo [intuição interna] como condições de possibilidade do conhecimento apriorístico. Inclusive, uma das omissões que Heidegger, em seu retrospecto aniquilatório acerca de concepções ontologicamente insatisfatórias atribui Kant é a não-formulação de uma ontologia da pré-sença, o que, segundo o autor se deve à influência do racionalismo cartesiano no pensamento do filósofo de Königsberg, consoante se extrai da seguinte passagem:
 
“Na medida em que assume a posição ontológica de Descartes, Kant omite uma coisa essencial:  uma ontologia da pré-sença. No sentido das tendências mais próprias do pensamento de Descartes, essa omissão é decisiva. Com o “cogito sum”, Descartes pretende dar à filosofia um fundamento novo e sólido. O que, porém, deixa indeterminado nesse princípio “radical” é o modo de ser da res cogitans, ou, mais precisamente, o sentido do ser do “sum”. A elaboração dos fundamentos ontológicos implícitos no “cogito sum” constitui o ponto de parada na segunda estação a caminho de um retorno destrutivo à história da ontologia. A interpretação comprova por que Descartes não só teve que omitir a questão do ser como também mostra por que se achou dispensado da questão sobre o sentido do ser do cogito pelo fato de ter descoberto sua “certeza absoluta”. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. I, p. 53)     
 
Com isto evitamos o equívoco de confundir a temporalidade heideggeriana com os prolegômenos kantianos da Crítica da Razão Pura. Verdade assiste a Hauschild quando ele diz que utilizar o Dasein para escopos civilizatórios implicaria em reduzir o alcance de suas potencialidades à dimensão das ciências ônticas, tolhendo, assim, os fundamentos ontológicos do mesmo. Todavia, impende salientar que questões de ordem puramente especulativas não deveriam constituir óbice à apropriação metodológica de um conceito aberto como o de Ser-Aí, e por “aberto” queremos dizer passível de ressignificações e remodelizações pragmático-descritivas. Neste diapasão, poderíamos dizer que a Quarta Teoria Política não compreende o Dasein em sua dimensão semântica pura ou universal, na medida em que reconhece, com amparo na fenomenologia husserliana, uma plurissubjetividade de concepções antropológico-existenciais de projetos de vida boa. Seria como se cada povo possuísse um Dasein, ou um entendimento particularizado do significado do ser nos entes, o que nos levaria a pensar o Dasein como instância ôntico-ontológica gerativa de pré-conceitos. É o que se extrai do seguinte excerto:
 
“Aderentes da Quarta Teoria Política devem agir passo a passo: se nós simplesmente argumentarmos a reversibilidade do tempo e o Dasein como sujeito da 4ª Teoria Política, seria o primeiro e principal passo. Assim, nós liberaríamos espaço para os pré-conceitos. Nós podemos definir muitos pré-conceitos com relação à reversibilidade do tempo e Dasein/Traiectum, por isso podemos definir vários conceitos políticos do tempo e cada um deles pode ser conectado em um atual projeto político, de acordo com os princípios da Quarta Teoria Política. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 76) 
 
Os pré-conceitos discriminam concepções de temporalidade politicamente institucionalizadas no bojo de cada comunidade política, sem prejuízo da assunção de vetores axiológico-existenciais distintos. Não seria próprio dizer, então, que cada povo etno-culturalmente diferenciado possui um Dasein. Mas nos parece legítimo supor a existência de uma multiplicidade de concepções do que, em última instância, viria a significar o Dasein, e o que fundamenta esta multiplicidade é precisamente o coeficiente geopolítico-civilizacional multipolar da Quarta Teoria Política. Isso, evidentemente, não constitui uma ruptura total com o entendimento de Hauschild de que o Ser-Aí deve ser considerado em sentido heideggeriano de existência pura ou transcendente, mas tão-somente uma ruptura parcial, vez que o Dasein não só pode como deve ser compreendido a partir de diferentes pontos de vista. O dualismo ciclicidade/linearidade ao qual me referi no artigo anterior teve em vista contrapor as duas principais concepções de temporalidade que se digladiam na pós-modernidade: a primeira (cíclica) representando o Poder da Terra, e a segunda (linear) representando o Poder Marítimo. Contudo, pode ser que existam modelos temporais hibridiformes ou até mesmo dissonantes daqueles por mim elencados. Nossa predileção pelo primeiro em detrimento do segundo se deve a razões puramente estratégicas e ao fato de Dugin ter elegido a reversibilidade do tempo histórico como um dos principais eixos de articulação da Quarta Teoria Política. 
 
Também concordamos com Hauschild de que tanto o tempo cíclico quanto o tempo linear podem conduzir o intérprete da realidade sócio-política circundante ao niilismo, “à meia noite da noite do mundo”. Entretanto, cumpre lembrar que, no contexto da Quarta Teoria Política, a ideia de reversibilidade do tempo histórico encontra-se intrinsecamente conectada à noção heideggeriana de Eregnis (Evento). Para Dugin, a Eregnis russa trará consigo uma nova aurora à humanidade, da mesma forma que em tempos pretéritos a aurora tzarista da “Rússia Branca” subjugou a “Rússia Roxa” (o império do Anticristo) sucessivas vezes. Tal encontra confirmação na Crônica Ura-Linda, segundo a qual a História Sagrada do continente euroasiático é marcada por recorrentes conflitos entre os frísios (filhos de Freya, a proto-raça hiperbórea do Norte) e os fineses (filhos de Finda, raça intermediária entre os frísios e os lídios, filhos de Lida, mãe dos escravos). É sumamente importante, antes de adentrarmos a questão da Eregnis russa, mencionar rapidamente o caráter cíclico da História Sagrada de acordo com a Crônica Ura-Linda. Nas palavras de Alexandr Dugin: 
 
“A Crônica Ura-Linda aplica sua metodologia sacro-racial não só à geografia, mas também à lógica da História. Nela, a História Sagrada tem um caráter cíclico. Para trazer o Espírito promove sua decadência, e a decadência, um novo Renascimento. Dentro da perspectiva da Crônica os “filhos de Freya” se convertem no sujeito principal da História Sagrada: suas vitórias equivalem à decolagem do Espírito Universal; suas derrotas, à sua queda. Toda a História descrita em Ura-Linda,a partir do afundamento de Atlântida, da Terra Velha, é a história da decadência dos frísios, é dizer, da trajetória descendente do ciclo. No princípio desaparece Atlântida, sua “Pátria grande”. Mais tarde, se submergem no Mar do Norte suas novas terras, situadas antigamente na zona do Banco Dogger. Obrigados posteriormente a emigrar à Eurásia, se mesclam com as tribos finesas ou sofrem pressões de sua parte. Finalmente, os pérfidos magos declaram guerra aos frísios e com seus ataques interrompem a sagrada tradição das Virgens Brancas. A última delas morre nas mãos dos magos. A sagrada chama nórdica se apaga. –tradução livre do espanhol – (DUGIN, Alexandr. Rusia: El Misterio de Eurasia, pgs 85 e 86)   
 
Essa perspectiva mítico-escatológica da geografia sacral viria, mais tarde, a influenciar a apropriação duginiana do conceito de Eregnis, com vistas a resistir à inevitabilidade da influência niilista do ocidente sobre a trajetória do ciclo cósmico, nos seguintes termos:
 
“Heidegger usa um termo especial, “Eregnis” – o “Evento”, para descrever esse retorno súbito do Ser. Ele ocorre exatamente à meia noite da noite do mundo – no momento mais escuro da história. O próprio Heidegger constantemente vacilava quanto a esse ponto já ter sido alcançado ou – “ainda não”. O eterno “ainda não”...
 
A filosofia de Heidegger pode provar ser aquele eixo central conectando tudo ao seu redor – das segunda e terceira teorias políticas reinterpretadas ao retorno da teologia e da mitologia. Assim, no coração da Quarta Teoria Política, em seu centro magnético, está a trajetória da Eregnis (o “Evento) iminente, que incorporara o retorno triunfante do Ser no exato momento em que a humanidade o esquece de uma vez por todas ao ponto de que seus últimos traços desaparecem” (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 30 e 31)
 
E arremata, mais adiante:
 
“Porém, é possível afirmar desde já que a versão russa da Quarta Teoria Política, baseada na rejeição do status quo em suas dimensões práticas e teóricas, focará na “Eregnis russa”. Esse será aquele “Evento”, único e extraordinário, para o qual muitas gerações de russos viveram e esperaram, do nascimento de nossa nação à chegada futura do Fim dos Dias” (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 32 e 33)       
 
Portanto, a Quarta Teoria Política, como negação do status quo vigente, estaria incumbida de preparar o terreno para a chegada da Eregnis russa, para o triunfo da “Rússia Branca” (constante na profecia da Virgem) sobre a “Rússia Roxa” (estandarte do império do Anticristo). Isso só pode ser feito desde uma perspectiva de tempo cíclico, reversível e não-linear, em coordenação com a função de institucionalização política da historicidade cronológica presidida pelo Dasein. É preciso, na esteira deste raciocínio, obtermos uma visão de conjunto, o que implica, em certo senso, abandonarmos especulações improfícuas em prol de uma abordagem teórico-prática vocacionada para escopos civilizacionais, firmes na tese de que “a pós-modernidade, que Heidegger não viveu pra ver, é, em todos os sentidos, o esquecimento último do Ser, é aquela “meia-noite”, quando o Nada (niilismo) começa a escorrer de todas as rachaduras. Porém, essa filosofia não era desesperançosamente pessimista. Ele [Heidegger] acreditava que o próprio Nada era o outro lado do puro Ser, o qual, de modo tão paradoxal! – lembra a humanidade de sua existência. Se nós decifrarmos corretamente a lógica por trás do desdobramento do Ser, então a humanidade pensante poderá salvar a si mesma com máxima rapidez no momento de maior risco. “Onde está o perigo, lá também cresce a oportunidade de salvação”, Heidegger cita a poesia de Friedrich Hölderlin”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 30)  
 
Voltemos nossa análise agora para a questão da historicidade da pré-sença, com o intuito de desfazer o equívoco de que a ontologia heideggeriana é completamente alheia ao tempo histórico. O fato de Heidegger nos oferecer a intramundanidade do Ser como origem da temporalidade historiográfica não significa que devemos ignorar o aspecto ôntico do tempo, mas tão-somente que o enraizamento de tal aspecto encontra-se ancorado na temporalidade. É o que se colhe da seguinte preleção: “Se a própria historicidade deve-se esclarecer a partir da temporalidade e, originariamente, a partir da temporalidade própria, então na essência desta tarefa reside o fato de que ela só pode ser desenvolvida através de uma construção fenomenológica. A constituição ontológico-existencial da historicidade deve ser conquistada por oposição à interpretação vulgar que encobre a história da pré-sença”. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. II, p. 180)    
 
Logo, a historiografia, considerada em termos rigorosamente científicos, seria a confirmação das potencialidades latentes da origem ontológica da história. Mas isso não constitui um entrave no sentido de que deveríamos abandonar tudo o que é ôntico em virtude de essencialidades puramente ontológicas do Ser intramundano. Há um aspecto do tempo que sempre pode ser calendarizado ou cronologizado. Esta seria a forma imediata pela qual nós apreendemos o tempo como fenômeno através da pré-sença. “Todavia, a pre-sença deve ser chamada de “temporal” também no sentido de ser e estar “no tempo”. Mesmo sem uma construção historiográfica dos fatos, a pre-sença, de fato, precisa e se vale de calendário e de relógio. Ela faz a experiência do que “com ela” acontece, como acontecendo “no tempo”.  (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. II, p. 181)   
 
Destarte, a assimilação do Dasein pela Quarta Teoria Política não nos parece infundada, principalmente se levarmos em conta que ela ocorre no contexto de uma epistemologia metapolítica e supra-ideológica.  Em outros termos: Alexandr Dugin não politiza o Dasein em sua Quarta Teoria Política, mas,antes, é o Dasein que, como agente histórico da Quarta Teoria Política (re)temporaliza a política, fracionando  o processo de institucionalização do tempo histórico em vários eixos de subjetividade transcendente. É assim que poderíamos aludir não a um, mas a uma vasta gama de transcendens existenciários fluindo ôntico-ontologicamente através do mosaico hipercomplexo de uma plataforma geopolítica pretensamente multipolar. Nesse sentido, Dugin obtempera: “Nós podemos estabelecer sobre esta base o prognóstico e os projetos. Segundo Heidegger, o estar lançado (Geworfenheit) do sujeito (Dasein) o força a se projetar. Etimologicamente está claro: o sujeito é formado por sub-jectum(sub-jacere), o projeto – por pro-jectum (pro-jacere). Em ambos os casos nós temos o verbo “lançar”. A análise do futuro está enraizada nisso: apreendendo o futuro, nós o estamos fazendo. É um labor sobre a história e sobre a consciência do tempo enquanto tal”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 84)
 
Mas isso levanta um problema, que pode ser assim enunciado: como sociedades detentoras de projetos de vida mutuamente contraditórios poderiam se respeitar nesse plano de consistência multipolarizado? Ou, ainda: como assegurar um futuro igualmente próspero para todas as concepções de tempo histórico que disputam um lugar ao sol? A resposta para essas indagações reside naquilo que Dugin chamou de Sujeito Radical, a assunção heterodoxa de uma instância ainda mais profundamente arraigada na estrutura ontológica da realidade do que a subjetividade transcendente de Husserl. Em célebre preleção, Dugin aduz que “nas profundezas da subjetividade transcendental, há outra camada a qual Husserl não cavou. Husserl estava convicto de que aquela descoberta feita por ele era a última. Mas acontece que não era. Tinha que haver outra dimensão ao redor, a dimensão mais escondida. Nós podemos designá-la como Sujeito Radical. Se a subjetividade transcendental de Husserl constitui a realidade através da experiência da manifestação autorreferencial, o Sujeito Radical deve ser encontrado não no caminho para fora, mas sim no caminho para dentro. Ele se mostra apenas no momento da máxima catástrofe histórica, na drástica experiência do curto-circuito que dura por um momento mais longo e mais poderoso do que é possível suportar. A mesma experiência que faz a subjetividade transcendental se manifestar e implementar seu conteúdo criando assim o tempo, e com sua intrínseca música é considerada pelo Sujeito Radical como um convite para se mostrar de maneira diferente – no outro lado do tempo. Para ele, o tempo – em todas as formas e configurações – não é nada mais do que uma armadilha, o truque, o artificial, atrasando a real decisão. Para o Sujeito Radical não somente a virtualidade e a rede, mas a realidade já é a prisão, o campo de concentração, o sofrimento, a tortura. O levo cochilo da história é algo contrário à condição na qual ele poderia ser, completar a si mesmo, se tornar. Toda criação da subjetividade, sendo a formação secundária da temporalidade, é o obstáculo para sua vontade pura. Se nós aceitarmos a hipótese do Sujeito Radical, nós adquirimos imediatamente a instância que nos explica quem tomou a decisão da globalização, do suicídio da humanidade e do fim da história, quem concebeu esse plano e o trouxe para a realidade. Pode ser, portanto, o drástico gesto do Sujeito Radical interessado na libertação (impossível) não temporal.  O Sujeito Radical é incompatível com todos os tipos de tempo. Ele, veementemente, demanda o anti-tempo, baseado no fogo exaltado da eternidade transfigurada na luz radical. Quando todo mundo se foi, restarão somente aqueles que não puderam ir. Talvez esta seja a razão da grande provação”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 90 e 91)
 
E aqui alcançamos o ponto nevrálgico de toda a discussão: pressupor a existência de um Sujeito Radical por trás de uma multiplicidade de subjetividades transcendentes fugiria aos domínios da filosofia enquanto ciência profana e nos reconduziria a elucubrações de natureza esotérica, onde qualquer teoria política, por mais complexa que seja, não passaria de um eco ou um sussurro na prolífera vastidão dos mistérios humanamente imperscrutáveis (ôntica ou ontologicamente). Em última instância, a questão é a mesma de buscar apreender o Uno por trás do múltiplo, a eternidade necessária por trás da variabilidade acidental. O Sujeito Radical, como o anti-tempo ou como a outra face do tempo politicamente institucionalizado pelo Dasein traduz a mesma fatalidade da pulsão de morte que tenta se libertar de si mesma através da modelização de novos paradigmas caósmicos ou Universos de referência guattarianos. Seria demasiadamente infrutífero unir esforços para tentar definir os contornos semânticos do Sujeito Radical. A única coisa que podemos fazer é admitir que existe algo no Dasein que pode ser instrumentalizado historicamente para fins de redefinição da concepção de temporalidade predominante, qual seja: a de processo monotônico, linear ou unidirecional. Ao adotar o Dasein como agente histórico, a Quarta Teoria Política aniquila seu invólucro, a redoma de vidro na qual ele encontrava preso e o traz para a esfera do possível, das realizações concretas. Ou podemos, ainda, adotar a perspectiva tradicionalista de Julius Evola, de acordo com a qual inexiste fatalidade, mas tão somente uma conjugação de forças humanas e naturais que conflui, inelutavelmente, para a dimensão da pura sacralidade. Nas palavras de Evola: “É conveniente notar que tudo isto não corresponde de forma alguma a um <<fatalismo>>, mas sim que exprime antes a intenção permanente do homem tradicional de prolongar e de integrar a sua própria força com uma força não humana descobrindo momentos em que dois ritmos – o humano e o das potências naturais – por uma lei de sintonia, de acção concordante e de correspondência entre o físico e o metafísico se podem tornar uma única e mesma coisa, a ponto de arrastarem para a acção poderes invisíveis. Também assim se volta, portanto a confirmar a concepção qualitativa do tempo vivo, em que cada hora e cada momento tem a sua fisionomia e a sua <<virtude>> e em que – no plano mais elevado, o simbólico-sacro – existem leis cíclicas que desenvolvem identicamente uma <<cadeia ininterrupta de eternidades>>”. (EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, pgs. 204 e 205)          
 
Conclui-se, portanto, que o Dasein, compreendido à luz da Quarta Teoria Política, assimila o tempo como categoria política, o que não só o permite mobilizar uma quantidade astronômica de pré-conceitos como também a conferir substância à multiplicidade de concepções de temporalidade que retiram seu fundamento de legitimidade da institucionalização político-civilizacional do tempo histórico. Nesse diapasão, a intramundanidade do ser deve ser captada em acepção ôntico-ontológica, em flagrante imbricação com o sentido de coerência da Eregnis russa e com a multipolaridade do espectro civilizatório, esta última qualificadora do Quarto Nomos da Terra. Não queremos dizer, com isto, que a leitura de Hauschild acerca da ontologia heideggeriana está errada, mas simplesmente que o Dasein, nas latitudes metodológicas da Quarta Teoria Política, tem que poder abandonar o invólucro do espaço puro para adentrar o esquema fenomenológico. E aqui a sabedoria esotérica é de extrema importância para compreendemos o fenômeno temporal, não como um recinto fechado que atua eventicamente sobre si mesmo, mas como uma estrutura aberta que dinamiza a comunicação da humanidade com a natureza rumo à instância pura da eternidade imóvel. O tempo cíclico deve ser adotado para fins puramente estratégicos, de modo a provocar uma ruptura em relação à hegemonia da unidirecionalidade governada pelas Forças do Mar na pós-modernidade. É essa visão de conjunto que nos permitirá triunfar mais uma vez sobre a chaga do niilismo, sem precisarmos chegar no ponto crítico de abolirmos o tempo através do Sujeito Radical, essa estrutura recôndita que antecede a subjetividade transcendente.
 
NOTAS:
 
 
 
(versão espanhola)
 
(versão espanhola)
 
(versão espanhola)
 
 
 
REFERÊNCIAS:
 
 
DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, Editora Austral: Curitiba, 2012.
 
DUGIN, Alexandr. Rusia: El mistério de Eurasia, Grupo Libro 88, Colección Paraísos Perdidos: Madrid, 1992.
 
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. I, Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2005.
 
HEIDEGGER, Martin Ser e Tempo, vol II, Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2005.
 
EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1989.