Ucrânia é típico Estado falido criado artificialmente, diz ideólogo russo
Abas primárias
Ucrânia é típico Estado falido criado artificialmente, diz ideólogo russo
GUILHERME CELESTINO
DE SÃO PAULO
Por trás de várias das ambições expansionistas da Rússia está o cientista político e professor da Universidade Estatal de Moscou Aleksandr Dugin, 52.
Aliado do presidente Vladimir Putin, Dugin é uma espécie de referência intelectual do extremismo no país.
Ele é o criador da teoria do "neoeurasianismo", a formação de um espaço político para a civilização russa, mais ou menos nos moldes da antiga União Soviética.
De 1998 a 2004, foi conselheiro do presidente do Parlamento russo, Gennadiy Seleznyov, do núcleo duro de Putin.
Em entrevista à Folha, por e-mail, Dugin, que vem a São Paulo em setembro para um encontro sobre filosofia, diz que a sociedade de seu país não é liberal, defende as leis antigays de Putin e afirma que a anexação da Crimeia é só o início.
Folha - Os brasileiros não conhecem o senhor, poderia falar um pouco sobre sua carreira e teoria?
Aleksandr Dugin - Defendo firmemente valores espirituais e religiosos contra a cultura atual materialista, pervertida e decadente.
Ideias similares identifiquei nos textos dos emigrados eurasianistas russos de 1920-1930 que tentaram criar uma ideologia original combinando conceitos de tradição, conservadorismo e eslavofilia.
Tendo sido anticomunista durante o período soviético, mudei de ideia em 1991 durante a revolta liberal que julguei ser pior do que o socialismo.
Esse foi o ponto de partida para desenvolver o neoeurasianismo a partir da metade dos anos 80 quando as principais características da visão do novo mundo ficaram claras para mim.
O que é o eurasianismo, que muitos dizem ser a estratégia por trás da política externa de Putin?
O eurasianismo é baseado em uma visão multipolar e na rejeição da continuação da hegemonia americana.
A Eurasia é o território do antigo império czarista russo ou da União Sovíetica. Nós chamamos isso, em outros termos, de Grande Rússia.
A visão multipolar preconiza a integração na base da civilização comum. Então falamos de civilização eurasiana comum não só para os russos e os eslavos e/ou povos de religião ortodoxa, mas também para os povos turcos e aborígenes da Ásia Central, Sibéria e do Cáucaso.
O que o levou a apoiar Putin?
O realismo político de Putin e seu patriotismo emocional o fizeram mover para mais perto de minha própria posição ideológica e geopolítica. Eu apoio a Putin porque ele declara e cumpre os objetivos e ideais que são essencialmente meus.
Quando Putin chegou ao poder para o terceiro mandato esse marcou seu momento de ruptura decisiva com o liberalismo. Agora Putin adotou o eurasianismo.
Putin disse certa vez que o fim da URSS foi a maior tragédia geopolítica do século 20. O que ele quis dizer com isso?
A ênfase está na palavra geopolítica. Putin não lamenta tanto o fim da ideologia soviética, mas sim o colapso do espaço político que representava a Grande Rússia como entidade política com base na similaridade civilizacional entre a história e as culturas de diferentes grupos étnicos e povos.
O Ocidente sabe pouco ou nada da verdadeira história da Rússia. Às vezes eles pensam que a União Soviética era somente uma criação comunista e Estados como Ucrânia, Cazaquistão ou Azerbaijão, eram independentes antes da URSS, tendo sido conquistados pelos bolcheviques ou forçados dentro do Estado soviético.
O fato é que esses Estados nunca existiram como tal e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da URSS.
Esses países foram criados com suas atuais fronteiras após o colapso da URSS. Então Putin quer enfatizar o caráter artificial, casual e sem fundamento desse processo e sugere que esses Estados artificialmente criados são apenas Estados falidos.
Para prevenir esse fracasso, eles precisam ser integrados em um novo quadro geopolítico que seria a União Eurasiana. A ideia da União Eurasiana não é conquistar ou forçar países independentes e exitosos dentro de uma esfera de influencia russa, mas sim prevenir o inevitável colapso desses países como previsto em eventos como a separação da Geórgia, em 2008 e da Ucrânia em 2014.
O que o senhor acha da anexação da Crimeia e os protestos pró-russos no leste da Ucrânia?
Esse é o resultado lógico dos esforços das forças ultranacionalista que fizeram o golpe de Estado em Kiev em março para impor a identidade Ocidental-ucraniana (majoritariamente neonazista) para toda a população da Ucrânia.
Mas a verdade é que o leste e sul da Ucrânia têm uma população com uma história e identidade cultural completamente diferente. A Ucrânia é o típico Estado falido pós-soviético, artificial e que nunca existiu antes de 1991.
O sul e o leste são pró-Rússia, anti-fascista e fortemente pró-soviéticos. Sua população pertence ao mundo russo e à civilização eurasiana.
Daí que a atual guerra civil representa o retorno lógico das partes separadas da zona geopolítica russa.
Isso é apenas o começo do processo: até agora apenas 8 milhões da população com identidade eurasiana e pró-Rússia anunciaram a independência ou entrada na Rússia.
Mas há pelo menos 12 milhões com a mesma identidade, que ainda estão sob o controle de Kiev. A luta continua.
A atual situação na Ucrânia é um desafio para o renascimento da Rússia como superpotência?
Sim, se a Rússia conseguir lidar com isso passaremos a viver em um mundo multipolar. Agora se a Rússia falhar a unipolaridade vai continuar por mais um tempo. Mas eu duvido que a hegemonia americana possa durar mais tempo. A Rússia vai ganhar.
Como o sr. avalia o papel da diplomacia russa na guerra civil da Síria?
Putin mostrou para todos que não existe apenas um lugar onde decisões estratégicas são tomadas.
Os EUA e seus procuradores subimperialistas (Arábia Saudita, Turquia, entre outros) apoiam os rebeldes.
Moscou e a China apoiam Assad. Então há uma posição firme e um exemplo a seguir de como o mundo multipolar deveria ser.
Há mais de uma opção em situações críticas e mais de um lugar no qual as principais decisões estratégicas são tomadas.
O que o senhor pensa das leis anti-gays da Rússia?
Estão certas. O liberalismo insiste na eliminação de toda forma de identidade coletiva.
O último tipo de identidade coletiva é o gênero. A maioria absoluta dos russos tem uma atitude conservadora em relação à identidade de gênero.
Putin luta com tais leis não contra as relações homossexuais, mas contra a aplicação da ideologia liberal na forma de uma lei obrigatória e contra a normatização e legitimação jurídica do que é considerado perversão moral e psicológica.
O que o senhor acha dos protestos no ocidente em reação às leis anti-gays? Isso pode afetar a imagem da Rússia?
A Rússia não é um país liberal nem pretende ser. Então os liberais são livres para criticá-la. Mas no mundo há mais sociedades não liberais e conservadoras que aplaudem a Rússia nesse campo.
As elites politicas do Ocidente reagem contra a escolha da Rússia, mas muita gente nos países ocidentais apoia Putin e a Rússia pela mesma razão.
O sr. disse em artigo no jornal "Financial Times" em março de 2013 que o mundo precisa entender Putin. Como?
Entender Putin é o mesmo que entender o outro. A Rússia é o outro, o diferente. Nos temos outros valores, outra história, outras ideias, outra moral, outra antropologia, outra epistemologia, diferente do Ocidente liberal moderno.
Se o Ocidente identifica seus próprios valores como universais é impossível entender Putin.
Você pode apenas criticá-lo e responsabilizá-lo por aquilo que ele está fazendo. Porque ele é diferente (do Ocidente moderno) ele pensa de outra maneira e age de outra forma.
Estamos preparados para o diálogo baseado no entendimento mútuo. Assim como estamos preparados para o ódio por parte do Ocidente também.
Então é melhor realmente tentar nos entender. Tente ler atentamente nossos clássicos. Tente compreender o significado da nossa filosofia cristã ortodoxa, a teologia, nossos santos, nossos poetas e os nossos escritores como Dostoiévski, Pushkin e Gogol.
Você certamente vai encontrar o caminho para entender Putin, a Rússia e entender todos nós.