O fim do século xx – fim da modernidade (Excerto de 4TP)

O fim do século xx – fim da modernidade (Excerto de 4TP)

Por Alexander Dugin, tradução de Uri Irigaray.
 
 
O século XX acabou, mas apenas agora começamos a perceber e a entender esse fato. O século XX foi o século da ideologia. Nos séculos anteriores, religião, dinastias, Estados, classes e Estados-nação desempenharam um enorme papel na vida das pessoas e sociedades. Pois no século XX, a política deslocou-se para uma esfera puramente ideológica, redesenhando o mapa do mundo, das etnias e civilizações de uma maneira nova. Por um lado, as ideologias políticas representavam tendências civilizacionais anteriores com raízes profundas. Por outro, eram algo completamente inovador.
Todas as ideologias políticas, ao alcançar o pico de sua distribuição e influência no século XX, eram o produto de uma era nova era, Moderna, e incorporavam o espírito mesmo da modernidade, ainda que de modos diferentes e por meio de diferentes símbolos. Hoje rapidamente nos afastamos dessa Era. Assim, fala-se, cada vez mais e mais frequentemente, de uma “crise da ideologia” ou mesmo de um “fim da ideologia”. Desta forma, a existência mesma de uma ideologia estatal é explicitamente negada na Constituição da Federação Russa, por exemplo. Já passou da hora de abordar esta questão mais profundamente.
As três principais ideologias do século XX e seu destino
 As três principais ideologias do século XX foram:
liberalismo
comunismo
 fascismo.
Essas ideologias digladiaram-se entre si até a morte, formando, em essência, a totalidade da dramática e sangrenta histórica política do século XX. É bastante lógico enumerar essas ideologias (teorias políticas) tanto de acordo com sua significância, quanto de acordo com a ordem de seu aparecimento, como foi feito acima.
A primeira teoria política é o liberalismo. Ela apareceu primeiro, já no século XVIII, e acabou por mostrar-se a mais estável e bem sucedida, chegando afinal a prevalecer sobre seus rivais nesta batalha histórica. Como resultado dessa vitória, ela pôde reivindicar, entre outras coisas, a justificativa de sua pretensão a ser o herdeiro de todo o legado do Iluminismo. Hoje é óbvio que era o liberalismo a ideologia que mais se adequava à modernidade. No entanto, esse legado foi disputado anteriormente, e de forma dramática, ativa e, em alguns momentos, de forma bastante convincente, por outra teoria política – comunismo.
É razoável chamar o comunismo, bem como o socialismo em todas as suas variedades, de segunda teoria política. Ele apareceu depois do liberalismo – como uma resposta crítica ao surgimento do sistema burguês-capitalista, o qual foi, afinal, a expressão ideológica do liberalismo.
E, finalmente, o fascismo é a terceira teoria política. Na competição pela compreensão do espírito da modernidade, muitos pesquisadores (particularmente Hannah Arendt), consideram, de forma até convincente, o totalitarismo como uma das expressões políticas da modernidade. O fascismo, no entanto, voltava-se para as idéias e símbolos da sociedade tradicional. Em alguns casos, isso deu origem ao ecletismo. Em outros, ao desejo, da parte de conservadores, de liderar uma revolução, ao invés de resisti-la, e assim liderar a sociedade na direção contrária i.e. Arthur Moeller van den Bruck, Dmitrii Merezhkovskii etc.
O fascismo surgiu depois das outras principais teorias políticas e desapareceu antes delas. A aliança da primeira teoria política (liberalismo) com a segunda (comunismo), bem como os erros geopolíticos suicidas de Hitler, derrubaram no meio do vôo essa ideologia. A terceira teoria política foi vítima de “homicídio” ou talvez de “suicídio”, não chegando a viver o bastante para atingir a velhice e declínio natural, em contraste com a URSS. Assim, esse fantasma vampírico e sangrento (do fascismo), já tingido com uma aura de “Mal mundial” tornou-se atraente para os tipos decadentes da pós-modernidade, e ainda assusta, até certo ponto, a humanidade.
Com seu desaparecimento, o fascismo abriu o espaço para a batalha entre a primeira e a segunda teoria política. Essa batalha tomou a forma da Guerra Fria e deu a luz à geometria estratégia do mundo bipolar, o qual durou por quase meio século. Em 1991, a primeira teoria política, liberalismo, já tinha vencido a segunda, o socialismo. Esse acontecimento marcou o declínio global do comunismo.
Como resultado disso, ao final do século XX, a teoria liberal era a única restante das três teorias políticas da Modernidade – a única capaz de mobilizar vastas massas pelo mundo inteiro. No entanto, agora que se vê deixada por contra própria, o que se ouve em uníssono da boca de todos é “o fim da ideologia”, que se proclama abertamente. Por quê?
O fim do Liberalismo e o surgimento do Pós-liberalismo
Eis que o triunfo do liberalismo (a primeira teoria política) coincide com seu próprio fim. Esse é um paradoxo apenas aparente.
O liberalismo tinha sido, desde o início, uma ideologia. Não tão dogmática quanto o marxismo, mas não menos filosófica, elegante e refinada. Ele se opunha ideologicamente ao marxismo e fascismo, empreendendo não apenas uma guerra tecnológica pela sua sobrevivência, mas também defendendo seu direito de monopolizar sua própria imagem do futuro. Enquanto as outras ideologias rivais viviam, o liberalismo continuava a crescer, cada vez mais forte, precisamente como uma ideologia, isto é, uma série de ideias, visões e projetos que são típicos de um sujeito histórico. Ora, cada uma das três teorias políticas tinha seu sujeito.
O sujeito do comunismo era a classe. O sujeito do fascismo era o Estado, no caso do fascismo italiano de Mussolini, ou ainda araça no nacional-socialismo de Hitler. No liberalismo, o sujeito era representado pelo indivíduo, livre de todas as formas deidentidade coletiva e de qualquer “filiação” (l’appartenance).
Enquanto a luta ideológica tinha oponentes formais, nações inteiras e sociedades (ao menos teoricamente) podiam selecionar seu sujeito – seja a classe, racismo/estatismo ou individualismo. A vitória do liberalismo resolveu essa questão: o indivíduo tornou-se o sujeito normativo no âmbito de toda a humanidade.
É nesse ponto que surge o fenômeno da globalização, é nesse ponto que o modelo de uma sociedade pós-industrial se faz conhecer e a era pós-moderna surge. De agora em diante, o sujeito individual não é mais um resultado de escolha, mas um tipo de dado obrigatório (um dado imperativo). O homem agora está livre de qualquer “filiação” e quaisquer identidades coletivas, e a ideologia dos “direitos humanos” agora é amplamente aceita, ao menos na teoria, e praticamente compulsória.
Uma humanidade sob o liberalismo, composta de indivíduos, é naturalmente inclinada à universalidade e almeja tornar-se global e unificada. Assim, os projetos de um “Estado mundial”,governança global e governo mundial nascem.
Um novo nível de desenvolvimento tecnológico torna possível atingir a independência da estruturação em classes que era característica das sociedades industriais. i.e. pós-industrialismo.
Os valores de racionalismo, cientismo e positivismo são reconhecidos como “formas veladas de políticas repressivas, totalitárias” ou como a grande narrativa, e são criticados. Ao mesmo tempo, esse processo é acompanhado de uma glorificação paralela da liberdade completa e independência do indivíduo, livre de qualquer tipo de fatores limitantes, incluindo a razão, moralidade, identidade (social, étnica e até de gênero), disciplinas etc. Tal é a condição da Pós-modernidade.
Nesse ponto, o liberalismo deixa de ser a primeira teoria política e torna-se a única prática pós-política. É a chegada do “fim da História” de Fukuyama: o econômico, na forma de um mercado capitalista global, substitui a política, e nações e Estados dissolvem-se no caldeirão (melting pot) da globalização do mundo.
Ao triunfar, o liberalismo desaparece e torna-se uma entidade diferente – torna-se pós-liberalismo. Ele já não possui dimensões políticas; não representa livre escolha, mas antes se torna uma espécie de “destino” determinístico historicamente. Eis aí a fonte da tese sobre a sociedade pós-industrial: “o econômico como destino”.
Desta maneira, o início do século XXI coincide com o fim da ideologia, isto é, o fim de todas as três principais ideologias. Cada uma delas encontrou um término diferente: a terceira teoria política foi destruída em sua “juventude”; a segunda pereceu de velhice, decrepitude e a primeira renasceu como algo diferente – na forma de pós-liberalismo e na forma da “sociedade do mercado global”. Em cada caso, a forma que todas as três teorias políticas assumiam no século XX já não é mais útil, eficiente ou relevante. A todas elas falta poder explicativo, a habilidade de ajudar na compreensão de eventos atuais e a capacidade de responder a desafios globais.
A necessidade de uma Quarta Teoria Política deriva precisamente disso.
A Quarta Teoria Política como resistência ao status quo
A Quarta Teoria Política não surgirá sem esforço, dada a nós.Ela pode aparecer e pode não aparecer. O pré-requisito para seu aparecimento é dissidência. Isto é, dissidência contra o pós-liberalismo como prática universal, dissidência contra a globalização, contra a pós-modernidade, contra o “fim da História”, contra o status quo, contra o desenvolvimento inercial dos principais processos civilizacionais no alvorecer do século XXI.
O status quo e sua inércia não pressupõem nenhuma teoria política. Ora, um mundo global pode muito bem ser governado tão somente pelas leis do econômico e pela moralidade universal dos “direitos humanos”. Nesse mundo, todas as decisões políticas são substituídas pelas decisões técnicas. A maquinaria e a tecnologia substituem tudo. O filósofo francês Alain de Benoist chama-o de ‘la gouvernance’ou ainda de “microgerenciamento”.Gerenciadores e tecnocratas tomam o lugar do político (que tomava as decisões históricas), optimizando a logística do gerenciamento. Massas de povos são igualadas a uma única massa de objetos individuais. Por esse motivo, a realidade pós-liberal (ou antes a virtualidade), cada vez mais afastando a realidade de si mesma, conduz à completa abolição da política.
Poder-se-á argumentar que os liberais mentem quando falam do “fim da ideologia” (tal foi meu debate com o filósofo Aleksandr Zinoviev); “na verdade”, poder-se-ia dizer, “eles permanecem crentes em sua ideologia e simplesmente negam a todas as outras o direito de existir”. Ocorre que isso não é bem verdade – quando o liberalismo transforma-se, deixando de ser um arranjo ideológico e passando a ser o único conteúdo da existência social e tecnológica existente, aí já não é mais uma “ideologia”, mas antes um fato existencial, uma ordem objetiva das coisas. Desafiá-la não é apenas difícil, como até mesmo tolo. Na era pós-moderna, o liberalismo desloca-se da esfera do sujeito para a esfera do objeto. Isso potencialmente levará à completa substituição da realidade pela virtualidade.
A Quarta Teoria Política é concebida como uma alternativa ao pós-liberalismo, mas não como um arranjo ideológico em relação a outro. Na verdade, trata-se de uma ideia incorpórea que se opõe à matéria corpórea; trata-se de uma possibilidade entrando em conflito com a atualidade, como aquilo que ainda pode vir a existir atacando aquilo que já existe em ato.
Ao mesmo tempo, a Quarta Teoria Política não pode ser a continuação nem da segunda nem da terceira teoria política. O fim do fascismo, assim como o fim do comunismo, não foi simplesmente um mal entendido acidental, mas a expressão de uma lógica histórica bastante lúcida. Eles desafiavam o espírito da modernidade (o fascismo fê-lo de forma quase aberta, o comunismo mais secretamente: vide a análise de Mikhail S. Agurskii ou Sergei Kara-Murza do período soviético como uma versão especial “escatológica” da sociedade tradicional) e fracassaram[1].
Isso significa que a luta com a metamorfose pós-moderna do liberalismo (na forma da pós-modernidade e globalização) deve ser qualitativamente diferente; ela deve se basear em princípiosnovos e propor estratégias novas.
Não obstante, o ponto de partida dessa ideologia é precisamente a rejeição da essência mesma da pós-modernidade. Esse ponto de partida é possível – mas não é certo, nem garantido, nem predeterminado – porque ele surge do livre arbítrio do homem, de seu espírito, e não de um processo histórico impessoal.
Contudo, essa essência é algo completamente novo (assim como a detecção da lógica – antes imperceptível –  por trás da modernidade mesma, modernidade essa que atualizou sua essência tão completamente que exauriu seus recursos internos e mudou seu modo de operação para o da reciclagem, reprodução ou repetição irônica dos estágios anteriores da história da ideologia e da luta ideológica).
A Quarta Teoria Política é uma “Cruzada” contra as seguintes coisas:
Ora, se a terceira teoria política criticava o capitalismo do ponto de vista da Direita e a segunda o fazia do ponto de vista da Esquerda, o novo estágio já não apresenta mais essa topografia política: é impossível determinar onde estão localizadas Esquerda e Direita em relação ao pós-liberalismo. Há apenas duas posições: conformidade (o centro) e dissidência (a periferia). Ambas as posições são globais.
A quarta teoria política é a fusão de um projeto que é um impulso comum de tudo que foi descartado, destronado e humilhado durante o processo de construção da “sociedade do espetáculo” (a construção mesma da pós-modernidade). “A pedra que os construtores rejeitaram veio a tornar-se a pedra angular” (Marcos, 12:10). O filósofo Aleksandr Sekatskii salientou com propriedade a importância da ideia de “marginalidade” na formação de um novo aeon filosófico, sugerindo o termo “metafísica das ruínas” como metáfora.
A Batalha pela Pós-modernidade
A Quarta Teoria Política lida com a nova encarnação de um antigo inimigo. Ela desafia o liberalismo, bem como o faziam a segunda e terceira teorias políticas do pasado, mas o faz sob condições novas. A principal novidade dessas condições reside no fato de que de todas as três grandes ideologias políticas, apenas o liberalismo conquistou o direito ao legado que subjaz no espírito da modernidade e assim obteve o direito de criar o “fim da História”, baseado em suas próprias premissas.
Teoricamente, o fim da História poderia ter sido diferente: um “Reich planetário”, se os nazistas tivessem triunfado, ou ainda o “comunismo global”, se os comunistas estivessem corretos. No entanto, o “fim da história” se mostrou precisamente liberal. O filósofo Alexandre Kojève foi um dos primeiros a prevê-lo; suas ideias foram mais tarde reproduzidas por Francis Fukuyama. Sendo esse o caso, quaisquer apelos à modernidade e seus pressupostos (aos quais ainda recorrem, em graus variados, os representantes da segunda e da terceira teorias políticas), perdem sua relevância. Eles perderam a batalha pela modernidade, uma vez que os liberais triunfaram. Por essa razão, a questão da modernidade, e, incidentalmente, da modernização, pode ser tirada da pauta, removida da agenda. Começa agora a batalha pela pós-modernidade.
E é precisamente nesse ponto que novas perspectivas abrem-se para a Quarta Teoria Política. O tipo de pós-modernidade que está atualmente sendo realizada na prática (a Pós-modernidade pós-liberal), anula a lógica estrita da modernidade mesma – uma vez que o objetivo foi atingido, os passos que almejam atingi-lo já perdem seu sentido. Em outras palavras, a pressão da couraça ideológica diminui, torna-se menos rígida. A ditadura das idéias é substituída pela ditadura das coisas: senhas de log-in, passaportes de acesso e códigos de barras. Furos novoscomeçam a aparecer no tecido da realidade pós-moderna.
Como a terceira e segunda teorias políticas (que foram concebidas na verdade como uma versão escatológica do tradicionalismo), tentaram um dia “domesticar a modernidade” em sua luta com o liberalismo, da mesma forma, hoje existe uma chance de realizar algo análogo com a pós-modernidade, utilizando aqueles “furos novos” especificamente.
O liberalismo desenvolveu armas perfeitamente operacionais que visavam as alternativas diretas a ele, e essa foi a base para sua vitória. Mas é precisamente nesse triunfo que reside o maior risco para o liberalismo, seu ponto fraco. Tudo que é necessário fazer é determinar a localização desses novos pontos vulneráveis na teia do sistema global e decifrar suas senhas, por assim dizer, para assim, como um hacker, invadir seu sistema. Ao menos, deve-se tentar. Os eventos de 11 de setembro em Nova Iorque demonstraram que tal é possível, ao menos em termos tecnológicos. A sociedade da internet pode vir a ser útil nas mãos justamente daqueles que são adversários dela. Em todo caso, urge, em primeiro lugar, entender a pós-modernidade e compreender a nova situação de forma não menos profunda do que a forma como Marx compreendeu a estrutura do capitalismo industrial.
A Quarta Teoria Política deve tirar sua inspiração (uma inspiração macabra, poder-se-ia dizer) da pós-modernidade mesma, do processo de liquidação do programa do Iluminismo e do advento da sociedade do simulacro, interpretando tal quadro como um chamado à luta e não como um dado do destino incontornável.
Repensando o passado e aqueles que fracassaram
A segunda e a terceira teorias políticas são inaceitáveis como pontos de partida para uma resistência ao liberalismo, particularmente devido à maneira como elas compreendiam a si mesmas e devido àquilo a que elas faziam apelo e ainda ao modo como operavam. Elas se posicionavam como aspirantes a representar a expressão mesma do espírito da modernidade e nessa empreitada falharam.
No entanto, nada impede que o fato mesmo de seu fracasso seja repensado como algo positivo e seus vícios sejam ressignificados como virtudes. Uma vez que a lógica histórica da Nova Era trouxe-nos a pós-modernidade, então ela também continha em si a essência secreta da Nova Era mesma, que só nos foi revelada em seu final.
A segunda e a terceira teorias políticas interpretavam a si mesmas como aspirantes à expressão do espírito da modernidade. E foram essas aspirações que se viram destruídas. Tudo que se relacione a essas intenções não realizadas nas ideologias anteriores não interessa aos criadores da Quarta Teoria Política. Contudo, nós deveríamos atribuir o fato mesmo de suas derrotas às suas vantagens e não às suas desvantagens. Uma vez que fracassaram, elas provaram que no fundo não pertenciam ao espírito da modernidade, o que, por sua vez, levou à matriz pós-liberal. Nisso, precisamente nisso, residem as suasvantagens. Mais do que isso, tal significa que os representantes da segunda e terceira teorias políticas – seja conscientemente ou não – posicionavam-se ao lado da Tradição, ainda que sem tirarem disso as conclusões necessárias ou mesmo sem sequer se darem conta disso.
A segunda e a terceira teorias políticas devem serreconsideradas, de modo a selecionar nelas aquilo que deve ser descartado e aquilo que tem valor em si mesmo. Como ideologias propriamente ditas, completas, tomadas em seus próprios termos e literalmente, elas são totalmente inúteis – seja teoreticamente ou praticamente. No entanto, alguns aspectos marginais delas que em geral não foram implementados e permaneceram na periferia ou nas sombras (lembremo-nos da “metafísicas das ruínas” mais uma vez) podem vir a se mostrar inesperadamente de valor, e de grande valor, saturados de sentido e intuição.
Seja como for, é preciso repensar a segunda e a terceira teorias políticas de uma maneira nova, a partir de uma nova perspectiva – e isso deve ser feito apenas após renunciarmos, recusarmos depositar qualquer confiança nelas, no que diz respeito às estruturas ideológicas nas quais residia sua “ortodoxia”. A sua ortodoxia ideológica é o que menos interessa e menos tem valor. Uma re-leitura é o que seria bem mais produtivo: “Marx re-lido por meio duma visão positiva de Direita” ou ainda “Evola re-lido por meio duma visão positiva de Esquerda”. Essa empreitada “Nacional Bolchevique” fascinante, no espírito de um Nikolai V. Ustrialov ou de um Ernst Niekisch, no entanto, não é, em si mesma, o bastante. Afinal, o acréscimo mecânico da segunda teoria política à terceira não poderia, por si mesmo, conduzir a lugar algum. Apenas em retrocesso é possível delinear suas regiões comuns, aquelas as quais se colocavamem oposição resoluta ao liberalismo. Tal exercício metodológico é útil como aquecimento, antes de se iniciar uma elaboração plena da Quarta Teoria Política.
Uma leitura realmente significativa e decisiva da segunda e terceira teoria política só é possível com base numa Quarta Teoria Política já estabelecida. A Pós-Modernidade e suas condições (o mundo globalista, a gouvernance ou “microgerenciamento”, a sociedade de mercado, o universalismo dos “direitos humanos”, “a real dominação do capital” etc) representa o principal objeto na Quarta Teoria Política. E, no entanto, é ela que é radicalmente negada como valor.
O Retorno da Tradição e Teologia
A tradição (religião, hierarquia, família) e seus valores foram destronados na aurora da modernidade. Na verdade, todas as três teorias políticas foram concebidas como construções ideológicas artificiais por pessoas que compreenderam, de diferentes formas, a “morte de Deus” (Friedrich Nietzsche), o “desencantamento do mundo” (Max Weber) e o “fim do sagrado”. Era esse o cerne da Nova Era da Modernidade: o homem veio a destronar Deus; a filosofia e a ciência destronaram a religião – e os construtos racionais, técnicos e tecnológicos vieram a destronar a Revelação.
Contudo, se o modernismo exauriu-se na pós-modernidade, então, ao mesmo tempo, o período de “teomaquia” direta chegou a seu fim, juntamente com ele.
Os homens pós-modernos não são inimigos da religião e sim são indiferentes a ela. Além disso, certos aspectos da religião, aqueles, via de regra, pertencentes à esfera infernal, à “textura demoníaca” dos filósofos pós-modernistas são bastante atraentes. Em todo caso, a era de perseguir, combater a Tradição acabou, embora de acordo com a lógica do pós-liberalismo, isso provavelmente conduza à criação de uma nova pseudo-religião global, baseada nos fragmentos sucateados dos mais discrepantes cultos sincréticos, baseada no ecumenismo exuberante mais caótico e na ideia de “tolerância”. Essa situação é, de certa forma, mais aterrorizante do que o ateísmo direto e dogmático e do que o materialismo, mas o enfraquecimento da perseguição à Fé pode consistir em uma oportunidade, se os representantes da Quarta Teoria Política agirem de forma consistente, resoluta e descompromissada na defesa dos ideais e valores da Tradição.
Agora é o momento em que é seguro instituir como programa político aquilo que fora proscrito pela modernidade. Agora é precisamente o momento em que fazê-lo não mais parece uma empreitada tola ou condenada ao fracasso como ocorria antes – ao menos porque tudo na pós-modernidade já parece tolo e fadado ao fracasso, inclusive os aspectos mais “glamourosos” dela. Não é por acaso que os heróis da pós-modernidade sejam justamente os “estranhos”, a “aberração”, os “monstros”, “travestidos” e “degenerados” – trata-se duma lei de estilo. Contra esse pano de fundo (o pano de fundo dos palhaços do mundo), não há nada nem ninguém que possa parecer “demasiado arcaico”: nem mesmo os homens da Tradição, que ignoram os imperativos da vida moderna. Essa afirmação mostra-se verdadeira quando voltamos os olhos para os êxitos significativos do fundamentalismo islâmico, por exemplo, mas também para o reflorescimento e a influência exercida pelas altamente arcaicas seitas protestantes (Dispensacionalistas, mórmons etc) na política externa americana. George W. Bush, é bom lembrar, foi à guerra contra o Iraque porque, em suas palavras, “Deus me mandou invadir o Iraque!”. Isso está bem de acordo com seus guias metodistas protestantes.
Assim, a Quarta Teoria Política pode, com facilidade, voltar-se para tudo aquilo que precedeu a modernidade, com o intuito de tirar de lá sua inspiração. O reconhecimento da “morte de Deus” cessa de ser um imperativo mandatório para todos aqueles que desejam permanecer relevantes. Os homens da pós-modernidade já estão tão conformados com esse acontecimento que eles já não podem mais sequer entendê-lo – “Quem foi que morreu mesmo?” Porém, da mesma forma, os criadores da Quarta Teoria Política também podem esquecer esse “evento” – “Nós acreditamos em Deus, mas ignoramos todos aqueles que pregam Sua morte, da mesma forma que ignoramos as palavras de um louco”.
Isso marca o retorno da teologia e torna-se um elemento essencial da Quarta Teoria Política. Quando esse retorno ocorre, a pós-modernidade (globalização, pós-liberalismo e a sociedade pós-industrial) passam a poder ser facilmente ressignificados como “o reino do Anticristo” (ou suas contrapartidas em outras religiões – “Dajjal” dos muçulmanos, “Erev Rav” dos judeus e “Kali Yuga” dos hindus etc).
Não se trata apenas de uma metáfora capaz de mobilizar as massas, mas de uma fato religioso – o fato do Apocalipse.
Mitos e Arcaísmo na Quarta Teoria Política
Se o ateísmo da Nova Era cessa de ser algo mandatório para a Quarta Teoria Política, então a teologia das religiões monoteístas (as quais já tinham, por sua vez, destronado outras culturas sagradas anteriores), não passa automaticamente a ser a verdade absoluta – tanto pode passar quanto não. Teoricamente,nada limita a profundidade com que se pode abordar os valores arcaicos antigos, os quais podem tomar uma forma específica em uma nova construção ideológica, uma vez que sejam adequadamente reconhecidos, identificados e compreendidos. Uma vez eliminada a necessidade de ajustar-se a teologia ao racionalismo da modernidade, os transmissores da Quarta Teoria Política veem-se livros para ignorar aqueles elementos teológicos e dogmáticos, que haviam sido afetados pelo racionalismo nas sociedades monoteístas, especialmente nos estágios mais recentes. Esse elementos mais recentes levaram ao aparecimento do deísmo sobre as ruínas da cultura cristã europeia, seguido finalmente pelo ateísmo e materialismo, durante o desenvolvimento (agora datado) dos programas da era moderna.
Não apenas os mais elevados e supramentais símbolos da fé podem ser colocados novamente no tabuleiro como um novo escudo, como também aqueles aspectos irracionais dos cultos, ritos e lendas – aqueles que maravilhavam e desorientavam os teólogos nos estágios anteriores. Se nós rejeitamos a ideia de progresso que é inerente à modernidade (modernidade essa que, como vimos, chegou a seu fim), então tudo aquilo que é arcaico adquire valor e credibilidade para nós, simplesmente porque é arcaico. “Arcaico” significa bom e quanto mais arcaico, melhor.
Ora, de todas as criações, a mais arcaica é o paraíso. Os propagadores da Quarta Teoria Política devem-se esforçar para descobri-lo novamente no futuro próximo.
Heidegger e o “Evento” (Ereignis)
Podemos, finalmente, identificar o fundamento mais profundo –ontológico! – da Quarta Teoria Política. Nesse momento, devemos prestar atenção não apenas nas teologias e mitologias, mas também na experiência filosófica reflexiva de um pensador em especial, o qual empreendeu um esforço único visando construir uma ontologia fundamental – o estudo mais conciso, paradoxal, mais profundo e penetrante do Ser. Eu me refiro, claro, a Martin Heidegger.
Segue uma breve descrição da ideia heideggeriana: na alvorada do pensamento filosófico, os homens (mais especificamente os europeus ou, mais especificamente ainda, os gregos) levantaram a questão do Ser como o ponto focal de seu pensamento. Porém, ao tematizá-lo, eles correram o risco de confundirem-se diante das nuances do relacionamento complicado entre o Ser e o pensamento, entre o puro Ser (Seyn) e sua expressão na existência – um ser (Seiende); entre o Ser humano no mundo (Dasein – ser-aí-no-mundo, na terminologia heideggeriana) e Ser-em-si-mesmo (Sein). Esse erro já ocorre no ensinamento de Heráclito sobre phusis e logos. E, mais tarde, aparece de forma óbvia no trabalho de Parmênides e, finalmente, em Platão, que colocou entre o homem e a existência as ideias e que definiu a verdade como a correspondência desses (teoria referencial do conhecimento). Aí tal erro atingiu seu ponto culminante. Isso deu a luz à alienação, a qual acabou por conduzir ao “pensamento calculante” (das rechnende Denken) e, então, ao desenvolvimento da tecnologia. Pouco a pouco, o homem perdeu de vista o puro Ser e seguiu o caminho doniilismo. A essência da tecnologia (baseada no relacionamento técnico com o mundo) expressa esse niilismo, em acúmulo constante. Na Nova Era, essa tendência atinge seu auge – odesenvolvimento técnico (Gestellfinalmente toma o lugar do Sere coroa o “Nada”. Heidegger detestava amargamente o liberalismo, considerando-o uma expressão da “origem calculante” que residiria no âmago do “niilismo ocidental”.
A Pós-modernidade, que Heidegger não viveu para ver, é, em sentido pleno, o esquecimento definitivo do Ser. Ela é aquela “meia-noite”, na qual o Nada (niilismo) começa a insinuar-se por entre os destroços. No entanto, a filosofia heideggeriana não era irremediavelmente pessimista. Ele acreditava que o próprio Nada é o outro lado do puro Ser, o qual – de maneira tão paradoxa! – lembra a humanidade de sua própria existência. Se nós decifrarmos corretamente a lógica por trás do arvorar do Ser, então a humanidade pensante pode salvar-se na velocidade de um raio no momento mesmo de maior risco. “Onde reside o perigo, lá também floresce a chance de salvação”, escreveu Heidegger, citando a poesia de Friedrich Hölderlin.
Heidegger utilizava um termo especial, “Ereignis” – o “Evento”, para descrever esse súbito retorno ao Ser. Ele ocorre precisamente à meia-noite da noite do mundo – no momento mais escuro da História. O próprio Heidegger constantemente vacilava nessa questão, acerca de se esse ponto já havia sido atingido ou – “ainda não” (quase...). Esse eterno “ainda não”...
A filosofia heideggeriana pode mostrar-se, afinal, ser ela mesma, aquele eixo central, ao longo do qual se estende todo o resto – desde a segunda e terceira teorias políticas (reconcebidas) até o retorno da teologia e mitologia.
Portanto, no âmago da Quarta Teoria Política, reside, como seu centro magnético, a trajetória do Ereignis (o “Evento”) a aproximar-se, o qual personificará o trifunfante retorno do Ser no momento mesmo em que a humanidade esquece-se completamente dele duma vez por todas, a ponta de seus últimos traços parecerem ter desaparecido.
A Quarta Teoria Política e a Rússia
Hoje muitos compreendem intuitivamente que não há lugar para a Rússia no “admirável mundo novo” da globalização, pós-modernidade e pós-liberalismo. Em primeiro lugar, o Estado mundial e o governo mundial estão gradualmente abolindo todos os Estados-nação em geral. Mais importante ainda é o fato de que a História russa como um todo é um argumento dialético com o Ocidente – e contra a cultura do Ocidente, é uma luta para sustentar aquela verdade russa (às vezes apreendida apenas intuitivamente), nossa própria ideia messiânica e nossa própria versão do “fim da História”, independentemente de como ela se expresse – seja pela Ortodoxia Moscovita, pelo império secular do czar Pedro ou pela revolução comunista mundial. As mais brilhantes mentes russas viram claramente que o Ocidente caminhava em direção ao abismo. Agora, ao olharmos para onde a economia neoliberal e a cultura pós-moderna levaram o mundo, podemos ter certeza de que essa intuição era completamente justificada – intuição essa que levou gerações de russos a buscarem alternativas.
A atual crise econômica global é apenas o começo. O pior ainda está por vir. A inércia do processo pós-liberal é tal que uma mudança de curso é impossível: para salvar o Ocidente, a “tecnologia emancipada”sem freio (Oswald Spengler) buscará sempre por soluções tecnológicas, mas sempre puramentetécnicas. Essa é a nova fase do começo de Gestell, espalhando a mancha niilista do mercado global por todo o planeta. Movendo-se assim, de crise em crise, de uma bolha à próxima bolha (note-se que milhares de americanos protestaram durante a crise entoando o seguinte slogan: “Give us a new bubble” ou “Dêem-nos uma nova bolha!”. Não poderiam ser mais diretos), a economia globalista e as estruturas da sociedade pós-industrial fazem com que a noite da humanidade torne-se cada vez mais negra. Está tão escura, na verdade, que, pouco a pouco, esquecemo-nos de que é noite. “O que é a luz?”, perguntam-se aqueles que nunca viram a claridade.
Está claro que a Rússia precisa seguir um caminho diferente. Seu próprio caminho. Mas é precisamente nesse ponto que reside nossa questão e nosso paradoxo. Evadir a lógica da pós-modernidade em um país sozinho não é tão simples. O modelo soviético tentou-o e desabou. Passado esse ponto, a situação ideológica mudou irreversivelmente, assim como mudou o equilíbrio estratégico de poder. Para que a Rússia possa salvar a si mesma e a outros, criar algum tipo de milagre tecnológico ou manobra ilusória é insuficiente. A História mundial tem sua própria lógica e o “fim da ideologia” não é um desastre fortuito, mas o começo dum novo estágio – aparentemente, o último.
Nessa situação, o futuro da Rússia depende diretamente de nossos esforços para desenvolver a Quarta Teoria Política. Não iremos longe, e poderemos apenas prolongar um pouco nosso tempo, se limitarmo-nos a localmente selecionar aquelas alternativas que a própria globalização oferece-nos e se limitarmo-nos a corrigir o status quo de maneira superficial. O desafio da pós-modernidade é tremendamente significativo: ele está arraigado na lógica do esquecimento do Ser e no afastamento levado a cabo pela humanidade de suas raízes existenciais (ontológicas) e espirituais (teológicas). Responder a isso com inovações improvisadas ou soluções de relações públicas é impossível. Portanto, é necessário remeter aos fundamentos filosóficos da História e efetuar um esforço metafísico para solucionar os problemas atuais – para contrapor-se à crise econômica global, ao mundo unipolar, bem como para preservar e fortalecer a soberania etc.
É difícil dizer como o processo de desenvolvimento dessa teoria dar-se-á. Uma coisa é clara: ele não pode ser um esforço individual, restrito a um grupo pequeno de pessoas. Tal esforço deve ser compartilhado e coletivo. Dessa maneira, os representantes de outras culturas e povos (tanto no Ocidente quanto no Oriente) podem realmente ajudar-nos, uma vez que eles também sentem a tensão escatológica do presente momento de forma aguda e estão igualmente engajados num esforço desesperado para encontrar um jeito de escapar do beco sem saída global. Entretanto, pode-se afirmar, desde já, que a versão russa da Quarta Teoria Política, baseada na rejeição do status quo em suas dimensão práticas e teórticas, focar-se-á no “Ereignis russo”. Será esse aquele “Evento”, singular e extraordinário, pelo qual tantas gerações de russos ansiaram, desde o nascimento de nossa nação até o Fim dos Tempos, que parece aproximar-se...
 

[1] Nota do tradutor inglês: Falantes da lingua inglesa podem ter maior facilidade de acesso a trabalhos similares sobre a URSS, modernidade e tradicionalismo, como “Stalinist Values: the Cultural Norms of Soviet Modernity, 1917-1941 (2003) de David Hoffman   e  National Bolshevism: Stalinist Mass Culture and the Formation of the Modern Russian National Identity, 1931-1956 (2002) de David Brandenberger.