Mito, utopia e realismo pluriversal
Abas primárias
Tradução: Augusto Fleck
George Sorel dividiu as formações sociais e políticas entre dois tipos: (1) as cuja ideologia é baseada no mito e (2) as que apelam para ideias utópicas. A primeira categoria atribuiu ao socialismo revolucionário, onde os verdadeiros mitos revolucionários não são descrições de fenômenos, mas uma expressão da vontade humana. A segunda categoria se refere aos projetos utópicos, que atribuiu ao mundo burguês e o capitalismo.
Diferente do mito, com suas atitudes irracionais, a utopia é produto do trabalho mental. Segundo Sorel, é obra de teóricos que tentam criar um modelo com o qual criticar a sociedade existente e medir o bom e o ruim nela. A utopia é um conjunto de instituições imaginárias, mas também oferece muitas e claras analogias com as instituições reais.
Os mitos nos instigam a lutar, enquanto a utopia roga pela reforma. Não é casualidade que alguns utópicos, depois de adquirirem experiência política, se convertam muitas vezes em hábeis estadistas.
O mito não pode ser refutado, já que se mantém através da crença popular e é, portanto, irredutível. Já as utopias, é claro, podem ser consideradas e rechaçadas.
Como sabemos, as diversas formas de socialismo, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político, foram construídos realmente sobre a base de mitos, como se evidencia facilmente na obra de seus defensores. Basta recordar do mito do século XX de Alfred Rosenberg, que se converteu em apologista do nacional-socialismo alemão.
No extremo oposto do socialismo também vemos uma base mitológica, ainda que realizada a posteriori. Inclusive quando Marx diz que o proletariado não necessita de mitos destruídos pelo capitalismo, Igor Shafarevich demonstra conclusivamente o vínculo entre as expectativas escatológicas do cristianismo primitivo e o socialismo. A Teologia da Libertação íbero-americana também confirma a forte presença do mito no socialismo da esquerda no século XXI.
Se falamos no sentido de segundas e terceiras teorias políticas que lutaram contra o liberalismo, é pertinente lembrar da observação de Friedrich von Hayek, na obra O caminho da servidão: “em fevereiro de 1941, Hitler considerou apropriado dizer publicamente que o nacional-socialismo e o marxismo são basicamente a mesma coisa.”
É claro que isso não diminui a importância do mito político moderno, assim como explica o ódio que professam os representantes do liberalismo moderno a ele. Assim, as alternativas política — seja a Nova Direita, o Indigenismo ou o Eurasianismo — representam uma nova ameaça totalitária para os neoliberais. Os liberais, sejam clássicos ou neoliberais, não repudiam nossos ideais porque pensam, em grande medida, tratarem-se de mitos intraduzíveis para a realidade.
Voltemos à utopia. A economia política liberal, como Sorel acertadamente assinala, é em si mesma, um dos melhores exemplos do pensamento utópico. Todas as relações humanas são reduzidas a uma forma de intercâmbio do livre mercado. Este reducionismo econômico é apresentado pelos liberais utópicos como uma panaceia para os conflitos, os desentendimentos e todo tipo de distensão que surge na sociedade.
A doutrina da utopia surge nas obras de Tommaso Campanella, Francis Bacon, Thomas More e Jonathan Swift, assim como de filósofos liberais como o líder dos radicais britânicos, Jeremy Bentham. A encarnação da utopia emerge num primeiro momento sobre uma rígida política reguladora que, ao mesmo tempo, incluía violência como coerção. Logo passamos para a expansão colonial que permitiu a acumulação de capital e o estabelecimento da “civilidade” única para todos os países. Depois, a utopia liberal foi mais longe, convertendo-se, conforme Bertram Gross, num “fascismo amistoso”, já que passou a institucionalizar a dominação e hegemonia através de um regime de leis e regulações internacionais. Para então, converter-se em si mesma num mito moderno: tecnocêntrico, racional e totalitário, que manchou a ideia primeira de uma sociedade justa, substituindo-a pelo materialismo e o direito totalitário, convertendo-se, assim, numa distopia.
Tanto no caso das sociedades centradas no mito quanto nas utopias, implementadas sistematicamente através de experimentos com o direito, a economia, a filosofia e a política, foi cometido o grave erro de tentar estender este modelo de forma global. O fascismo e o marxismo foram os primeiros a cair, historicamente. De fato, o liberalismo também já foi questionado agora, como precisamente assinalou duas décadas atrás John Lukacs em sua obra O fim do século XX e o fim da era moderna.
Tanto o mito quanto a utopia extraíram sua força do mundo pluriversal, homogeneizando-o e destruindo sua riqueza de culturas e visões de mundo. O pluriverso foi a base sobre a qual a superestrutura da utopia se formou. Também é sobre ele que certas forças modernas pretendiam pôr em marcha projetos históricos violentos, apoiados sobre capas mitológicas profundas.
Dentro da realidade pluriversal há espaço tanto para o mito quanto para a utopia, se limitados a certos espaços com características civilizatórias únicas e separados por fronteiras geográficas. O mito pode se realizar em forma teocrática ou de império futurista. A utopia poderia aspirar ao mesmo tempo tornar-se uma tecnopolis biopolítica ou um caldeirão de nações, porém separada das ordens centradas no mito.
Carl Schmitt sugeriu a construção e reconhecimento dos “Grandes Espaços Políticos”, Großraum autocontidos. A formação destes espaços requereria um programa global pluriversal, apelando às distinções míticas e aos fundamentos culturais dos diferentes povos. Mas todas as partes de uma ordem pluriversal devem ter uma coisa previamente em comum: a desconstrução da superestrutura da nascente utopia neoliberal