Desde o ponto de vista da Tradição nada nesse mundo perecível é aleatório, espontâneo, surgindo, existindo e desaparecendo segundo o capricho de circunstâncias caóticas ou pelo jogo de forças cegas. A Tradição vê a história da humanidade, a história do cosmo, a história do Ser como um processo significativo e providencial onde cada ponto do espaço e do tempo, cada elemento do universo desempenha uma função especial, porta o selo sagrado da Necessidade Sacral. Isso é verdadeiro para todos os aspectos naturais e culturais da história já que não há linha divisória entre artificial e natural, humano e miraculoso na esfera do sagrado. As criações humanas são seu próprio produto na mesma medida em que são criações da natureza. O Espírito Santo está fazendo a história do Ser através das pessoas e através dos elementos da natureza.
Qualquer história é uma história sagrada. Mas a humanidade é um aspecto subjetivo do sacral já que foi encarregada da missão misteriosa da implementação providencial do pensamento de Deus, seu plano sagrado na Terra. Porém, a história sagrada da humanidade é especificada pela sua divisão em diferentes povos. Precisamente os povos são os sujeitos principais da história. Dentro deles, sua diversidade, sua diferença, sua singularidade, em seus gestos e suas tragédias há um conteúdo de drama divino. Povos e seus destinos são capítulos do livro do Espírito Santo.
Cada povo possui sua missão, possui suas causas profundas para existir em um dado período espaço-temporal, e não em outro. Há para cada povo as causas para realizar atos específicos, para aparecer e desaparecer em certo momento da história. O fato de que povos cumprem missões específicas não é uma afirmação infundada e desprovida de fundamento de uma única escola histórico-filosófica. Qualquer religião, qualquer tradição sacral se refere a um povo exatamente dessa maneira. Um povo é um símbolo, a corporificação de uma ou de outra idéia sacral, de uma ou de outra essência celestial. No mundo cristão se pode tomar uma decisão sobre a missão dos povos com base no Antigo e Novo Testamento com uma interpretação ortodoxa compatível com a tradição antiga. A divisão em povos no Hinduísmo é considerada como uma expressão múltipla de um princípio divino unificado. Na verdade, tradições antigas pré-abraâmicas e não-abraâmicas viam a corporificação de uma ou de outra divindade em cada povo, sua expressão histórica e subjetiva. Guerras e armistícios, confrontos e discrepâncias, conquistas e lutas por independência, ascensões heróicas e quedas sem fim de povos históricos são a extensão humana de grandes mistérios celestes (ou infernais) preter-humanos. É justo dizer que a essência misteriosa de cada povo equivale a algum caráter super-humano, arcangélico, se funde com ele em sua profundidade, em sua clareza e pureza absoluta. Em todo, um povo é uma forma específica de epifania, teofania.
Nosso mundo moderno é indubitavelmente uma anomalia na corrente de ciclos sagrados (o hinduísmo, por exemplo, diz que vivemos no fim da Kali Yuga, Idade do Ferro, que exatamente se equipara à doutrina cristão sobre a vinda do Salvador logo antes do fim do mundo), não obstante, ele não pode privar completamente os povos de suas missões sagradas. Essa missão passa até mesmo pelas formas mais mecânicas, profanas e materialistas infligidas pela civilização moderna anti-sacral. Mesmo que seja temporariamente possível suprimir, forçar as energias de povos portadores do Divino ao controle horrendo de utopias sócio-econômicas, mais cedo ou mais tarde essas forças despertam, rompendo os grilhões e varrendo as quimeras do "admirável mundo novo" em uma explosão apaixonada de criação histórica. Os povos continuam a cumprir sua missão mesmo quando externamente parecem ter se dissolvido no reino da quantidade, morrendo no abismo anti-espiritual da civilização anti-natural industrial ou tecnotrônica. De outro modo, eles perderiam o sentido de sua existência.
A Religião da Rússia
O povo russo pode ser o exemplo mais convincente do fato de que o significado de "povo" em sentido profundo não pode ser atribuído aos conceitos modernos de "etnia", "nação", "Estado", etc. Não sem razão todos os pesquisadores se assombram com o fato de que "nacionalismo" de qualquer forma é algo historicamente ausente ou marginal na Rússia. Por razão de marginalidade nós não levamos em consideração imitações artificiais e periféricas de "nacionalismos" europeus por russos. O fato é que os russos percebem sua etnia diretamente como um fator religioso que ultrapassa essas instâncias - nação, cidadania, etc. - que são necessariamente presentes e dominam em outros povos. Os russos percebem sua identidade nacional como uma confissão. O misticismo étnico especial para nós quase não é conectado ao sangue. Mais provavelmente, o gigantesco e vasto espaço russo serve como expressão de nossa auto-consciência étnica. Ser russo significa pertencer a uma religião misteriosa especial que delineia a infinitude das fronteiras russas.
A peculiaridade de tal relação com o povo - e acima de tudo a ausência de elementos intermediários entre o instinto étnico direto e a dimensão metafísica - claramente aponta para a singularidade da missão sacral do povo russo como parte da história sagrada. Se o povo russo percebe seu destino misterioso de modo tão incomum, tão intenso, tão atento então esse destino deve realmente possuir alguma singularidade metafísica, algum significado incomum, relevante. Quase todos os pensadores e teólogos ortodoxos russos, todos os pintores e filósofos russos tem se proposto essa questão sobre o segredo misterioso da Rússia, sobre sua mística indizível e supra-racional. O staretz Philothey formulou essa singularidade ao nível cristão no conceito ortodoxo de "Moscou - a Terceira Roma". A nível estatal ela foi incorporada no Império continental. O gênio grandioso e destrutivo russo se mostrou na cultura. Porém, nós não temos a última resposta metafísica, a última equação sacral da "religião russa". Talvez haja um tempo para tentar expressar o "sacramento da Rússia" em termos metafísicos porque o caminho glorioso e pesaroso do povo russo, um grande povo inspirado por Deus, em muitas maneiras está chegando ao seu ponto de culminação, à última realização escatológica e soteriológica. Os sinais dos tempos estão claramente nos contando isso.
A Equação da Alma - O Anjo Púrpura
O autor islâmico sufi/xiita Sheikh al-Ishraq Shihaboddin Suhrawardi formulou em seus textos as bases da geografia sagrada mostrando a correlação de conceitos geográficos de Oriente e Ocidente com o significado do Oriente e Ocidente metafísicos. Talvez, para compreender o mistério da Rússia, deve-se fazer referência a essa doutrina, portando as mais importantes conexões espirituais.
Para Suhrawardi o Ocidente é um "lugar de fontes negras", "terra do exílio". A capital do Ocidente é a cidade de "Kayravan", "cidade do Mal", "cidade dos opressores e aprisionadores". Desde um ponto de vista simbólico, uma jornada ao Ocidente é uma "descida à prisão" onde os "guardas" mantém os estranhos no "porão escuro e úmido de um sinistro castelo".
O Oriente é o mundo da Fonte, o mundo da Causa Primeira. No centro do Oriente está a "Montanha Esmeralda" onde o Arcanjo Púrpura reside, possuindo uma asa branca e uma asa negra. O Oriente é a pátria da alma.
Porém, segundo Suhrawardi, a jornada a Kayravan, a capital do Ocidente, a descida por suas fontes é necessária para inflamar de desejo o retorno ao Oriente, para compreender e apreciar a grandeza da Alma do Mundo.
A doutrina de Suhrawardi se aplica não apenas ao nível vertical, onde o Ocidente é o símbolo do mundo corpóreo, e o Oriente do mundo espiritual. Em termos de Tradição, a realidade geográfica é em si uma reflexão da estrutura sagrada do Ser, e portanto as regiões ocidentais do continente são propensas a servirem como manifestação do Ocidente metafísico, como prisão para a alma, "fontes negras do exílio".
A Rússia como realidade sacro-geográfica indubitavelmente pertence ao Oriente.
É importante notar que muitas vezes patriotas russos tem tido consciência da singularidade da sacralidade russa mais claramente logo após visitarem os países ocidentais, após a compreensão de sua ausência de graça, de sua "natureza prisional", sua inferioridade metafísica. O reconhecimento do Arcanjo púrpura da Rússia via de regra começa após o retorno do "exílio ocidental". Então a santa pátria dos russos se expõe como pátria do arcanjo, como o Oriente do espírito, como o retorno à origem espiritual. É simbólico que Shatov em "Demônios" de Dostoiévski formulou sua idéia dos russos como povo portador de Deus (bodonosnyi narod) logo após voltar do Ocidente.
Porém, a Rússia é diferente de outras regiões sagradas do Oriente muito mais do que elas diferem entre si. Uma das principais características da Rússia é que formas metafísicas puramente espirituais, complexas e sofisticadas, como nos países do Oriente não-russo (o Oriente islâmico, taoísta, budista ou hindu), não se desenvolveram aqui. Portanto, a Rússia, desde o ponto de vista da geografia sagrada não se remete nem ao Ocidente "materialista racional" nem ao Oriente "metafísico espiritual". Deve-se assumir que a Rússia e os russos são a encarnação da alma do mundo, Anima Mundo. Isso explicaria imediatamente porque é dito sobre os russos que eles são "uma conjunção entre animal e anjo": de fato, uma fera e um anjo são expressões de dois aspectos do escopo de uma grande alma.
A Rússia é um lugar de graça direta que transcende as fronteiras da existência corpórea mas não ainda transfigurada pelo Logos intermediário, ou ingressa no campo da benção direta suprarracional em seu estado indiferenciado, abundante, superconcentrado. A Rússia é o armazém da "água da vida" distribuída para todos sem medida e lógica, despejada sobre digno e indigno, dada não por mérito, mas por excesso. A Rússia é a província do Arcanjo púrpura.
Segundo Suhrawardi o país do Oriente e o lugar da residência do Arcanjo púrpura é localizada precisamente no centro do mundo, no mundo da alma, onde a dualidade ainda não foi retirada (as duas asas do Arcanjo), como na unidade superior do céu puramente espiritual, mas onde a multiplicidade material do "reino ocidental da quantidade" já havia sido derrotada. A cor verde da montanha Qaf nas descrições do país do Oriente também apontam para o fato de que esta é uma busca pelo centro do mundo (segundo o simbolismo tradicional das cores).
O Caminho para o Oriente é o caminho para a Rússia e passa pela Rússia. É impossível chegar ao espírito passando pelo mundo da alma (Malakut). A unidade não pode ser encontrada sem se encontrar com o Arcanjo no topo da montanha esmeralda. Não se pode chegar à eternidade sem ter bebido da água da vida, da água da graça russa, o suco invisível da Rússia, doador de imortalidade.
Katechon
O mistério russo também possui sua forma externa. Este é o grande Império Russo. Segundo as origens religiosas das tradições cristãs, o Império possui em si mesmo um significado sagrado. Ademais, as doutrinas fundamentais da escatologia cristã, baseadas nas palavras do Apóstolo São Paulo na Segunda Mensagem aos Tessalonicenses (2, 1-17), tem, segundo a lenda, uma relação muito direta com o Império. O Império Russo, a Terceira Roma - o último dos Impérios. Logicamente, isto está no coração de toda a interpretação do Apóstolo sobre o fim do mundo.
São Paulo diz: "Pois o poder secreto da iniquidade já está em ação; mas aquele que o detém continuará a fazê-lo até que seja retirado do caminho". (II Tessalonicenses, 2.7). "Aquele que detém", em grego é "katechon", é interpretado pelos teólogos ortodoxos (por exemplo João Crisóstomo) como uma alusão ao Sacro Império, o Império Cristão. Segundo o ensinamento ortodoxo, sob "katechon", "o detenedor" (após a queda de Constantinopla) se deve entender Rússia, Moscou, a Terceira Roma, a Última Roma.
O Arcanjo Russo, cuja expressão externa são as fronteiras russas e cujo conteúdo interno é a comunidade religiosa da teoforia russa (povo portador de Deus), é o último obstáculo para o "filho da abominação". Esta é a missão escatológica da Rússia, que, mesmo sob a bandeira vermelha, sob o jugo de doutrinas materialistas fabricadas por "guardadores de poços do Ocidente", não obstante protegeu a humanidade da última fase de sua história. Mesmo a besta vermelha do comunismo era precisamente uma besta do Oriente, um sorriso monstruoso das camadas mais baixas da alma, mas era a alma, viva, vibrante, apaixonada, profunda, untada pelo mistério russo, pela graça russa, tendo bebido o líquido vivo da ressurreição. Porém, em comparação com o grande sofrimento russo, com o sofrimento do Arcanjo, "com o sofrimento do Oriente", mesmo o bem-estar e a prosperidade dos "poços ocidentais" é uma tortura insuportável pelo menos para aqueles que são untados com o espírito vivificador da Rússia, que são mordidos por sua tristeza luminífera e sua alegria sombria. Enquanto houver Rússia, há Igreja, há fé, há vida. Enquanto houver Rússia, há "aquele que o detém continuará a fazê-lo até que seja retirado do caminho". Enquanto houver Rússia, o "katechon" da alma mantém o "filho da abominação" longe de realizar o último ato escatológico maligno, não haverá chance para o Anticristo começar seu sermão fétido, um sermão de "conforto e bem-estar dominando no fundo dos poços do exílio ocidental".
A divisão que se dá na Rússia hoje está além das preferências políticas, ideológicas e filosóficas aleatórias. Pela primeira e talvez última vez na história russa, a missão do povo russo, a grande missão da alma do mundo, está posta na cristalina equação escatológica. Ser leal ao mistério russo, à igreja russa, ao destino russo significa estar ao lado "daquele que detém", ao lado do Império, do grande Império continental russo, que deve se expandir às fronteiras naturais da terra eurasiana, não de modo a tomar, comprar, conquistar, fazer servir, mas para salvar, para dar, para derramar a graça da alma mundial, para ser como um Cristo "o servo de seus servos", para guardar, para ajudar, para libertar, para não dar chance de que "o mistério da iniquidade acontece antes do tempo". Aqueles que abandonam e traem a Rússia hoje - com uma aparência patética, tão pobres, tão despossuídos, tão humilhados, ridicularizados, miseráveis - abandonam e traem o céu, abandonam e traem a pátria do espírito, abandonam e traem a si mesmos. Seu destino - as águas da morte, os porões de Kayravan, a capital do Ocidente, a sina maldita de servir ao "filho da morte". Aqueles que buscam entrar no Oriente, passando ao largo da Rússia, ainda assim chegarão ao Ocidente, mesmo que se encontrem na Turquia ou Índia, na China ou no Japão. A geografia sagrada possui sua própria lógica inexorável, e não se pode saltar um único degrau sem ser punido.
O Deus da Rússia
"A apostasia veio ao mundo, mas ai daqueles através dos quais ela vem", disse o Evangelho. O destino russo desde o início dos tempos tem levado o fardo da tragédia atual, "recuo, partido do katechon", a fuga do Arcanjo púrpura. Mas que terrível fim terá a ingenuidade estúpida e demasiado humana daqueles que hoje dão chutes ao corpo russo, ao corpo da "besta e do anjo". A Rússia hoje confia nas almas dos outros povos, a Rússia prova nações e continentes, a Rússia as lidera rumo à fileira dos justos.
Mas logo a donzela solar do Império abandonará sua cobertura, com fogo - derramará a graça luminosa do Arcanjo sobre os fiéis e um fogo descerá "morno", cuspido pela boca do Salvador, porque ele não era "nem frio nem quente".
A luz do Oriente é a luz da Rússia. A Igreja sabe que a ausência do "katechon", o anjo da Terceira Roma, será muito, muito breve". "Que sejam todos eles malditos os que não acreditaram na verdade, mas se regojizaram na iniquidade" (II Tessalonicenses 2.12).
Nós sabemos que Seu julgamento é um julgamento justo. Nós sabemos que a Rússia "não é desse mundo". Nós sabemos Quem conquistou o mundo e Aquele cuja terrível vinda em glória porá um fim ao fim.
Cristo, o sol do mundo, nosso verdadeiro Deus, "o Deus da Rússia".