Bossa Nova: Estrada e Juízo Final
Abas primárias
Se Vicente Ferreira da Silva representa a dimensão intelectual e filosófica da cultura brasileira, no nível popular e de massa também nos deparamos com um fenômeno que é extremamente característico do Dasein brasileiro único e original. Estamos falando do movimento musical e artístico “bossa nova”, fundado na década de 1950 por um grupo de músicos e poetas brasileiros, que se espalhou amplamente tanto no Brasil quanto muito além de suas fronteiras nos anos seguintes. Os fundadores do estilo “bossa nova” (literalmente “bossa nova” significa “nova tendência”) foram os compositores Carlos Antônio (Tom) Jobim (1927-1994), João Gilberto, bem como o poeta, filósofo e diplomata Vinicius de Moraes (1913-1980). Mais tarde, juntaram-se ao movimento Chico Buarque de Holanda, filho do historiador e sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (autor de “História Geral da Civilização Brasileira”), os compositores Edu Lobo, Roberto Menescal, as cantoras Nara Leão, Elis Regina, Maria Bethânia, entre outros.
A peculiaridade desse fenômeno cultural reside no fato de que, por um lado, ele se inspira na cultura popular (samba, baião etc.), por outro lado, seus criadores são intelectuais refinados (Vinicius de Moraes – poeta consagrado, clássico da literatura brasileira, que em sua poesia combina motivos existenciais penetrantes, formas fonético-filológicas portuguesas refinadas e, por vezes, imagens surreais; Antônio Carlos Jobim, admirador de Debussy, Ravel, do romantismo musical francês, possuidor de uma cultura altíssima da música clássica), e, por fim, o sucesso da bossa nova nas décadas de 1960-70 foi tão impressionante que a moda desse estilo, estilo de vida, dança e até roupas no estilo “bossa nova” inundaram a América e a Europa, além de se espalharem para muito além de seus limites.
A cultura da “bossa nova”, à primeira vista, concentra-se em relações românticas, em um flerte galante que varia seus tons desde uma paixão profunda até uma leve ironia. Parece que esta corrente cultural não é nada mais do que um substituto burguês, desprovido de qualquer conteúdo semântico substancial. No entanto, ao observarmos mais atentamente os textos, as melodias, a gama de sentimentos, emoções e sugestões expressas, veremos algo mais – algo que expressa (de maneira sutil e discreta) a essência da identidade brasileira, que, por sua vez, está inserida em uma identidade latino-americana mais ampla.
O principal conceito da bossa nova está no deslizamento, na transição suave (cromática) de um bloco semântico, emocional, ético, estético para o próximo, muitas vezes bastante diferente. Na “bossa nova” há algo do mundo dos espelhos de Borges, e o jogo de reflexos é tão intenso que todos os níveis se fundem em algo coeso: o inconsciente se transforma imperceptivelmente em racional, o irônico em dramático, o romântico em filosófico, o histórico, até mesmo o religioso. A sociedade brasileira, como notou o sociólogo francês Roger Bastide, constrói-se em transições suaves entre diferentes estratos sociais, grupos, estruturas, conjuntos de status e papéis, com muitos tons intermediários. Assim, entre os três principais grupos raciais do Brasil — brancos, índios e negros — existe uma infinidade de tipos nuançados: crioulos, mulatos, mestiços, moriscos, zambos. O mesmo fenômeno é observado na religião. Junto aos católicos, há uma igreja espírita bastante popular, inúmeras variantes de capítulos maçônicos, cultos tribais indígenas, crenças de origem africana e formas sincréticas como o candomblé, a santeria, o xangô, o Ifá Orisha (iorubá), o vodu (daomeano), etc. Para o brasileiro, é normal pertencer a várias confissões ao mesmo tempo, frequentando ocasionalmente diferentes cultos e templos; isso não gera condenação no ambiente social. Por isso, para quem imagina a sociedade brasileira de forma bastante contrastante, não será difícil encontrar uma mensagem religiosa em um gênero leve de música popular.
Seguindo essa lógica, podemos formular uma hipótese: a bossa nova, com toda sua leveza aérea e superficialidade irônica, constitui um fenômeno quase religioso – com seus rituais, doutrinas, símbolos preferidos, seus sacerdotes e profetas. No contexto brasileiro, onde as distinções entre confissões tradicionais e cultos sincréticos quase desapareceram, não seria muito radical fazer tal identificação: a bossa nova é um tipo particular (brasileiro) de religião. Um dos clássicos da bossa nova é a composição de Tom Jobim “Água de beber”, com letra de Vinícius de Moraes. À primeira vista, trata-se de uma história sentimental simples e despretensiosa, narrando sobre uma pessoa que deseja amar, mas teme entregar-se à paixão. No entanto, o refrão contrasta estranhamente com o conteúdo.
Água de Beber
Eu quis amar, mas tive medo
e quis salvar meu coração
mas o amor sabe um segredo
o medo pode matar o seu coração
Água de beber
Água de beber, camará
Água de beber
Água de beber, camará!
Eu nunca fiz coisa tão certa
Entrei pra escola do perdão
a minha casa vive aberta
abre todas as portas do coração!
Água de beber
Água de beber, camará
Água de beber
Água de beber, camará!
Eu sempre tive uma certeza
Que só me deu desilusão
É que o amor é uma tristeza
Muita mágoa demais para um coração
Água de beber
Água de beber, camará
Água de beber
Água de beber camará
O texto e a mensagem são, em geral, compreensíveis, embora, se pensarmos com atenção, o que nunca fazemos em relação a simples canções populares, permaneça completamente obscuro o que acabamos de ouvir (ler). O protagonista se decidiu pelo amor ou não? Ele perdeu algo ou apenas pensa que é inevitável? Ele manteve seu coração de alguma maneira ou foi, no final das contas, destruído pelo medo ou por um amor infeliz? Na verdade, há total incerteza. O refrão, aparentemente, baseia-se em uma sugestão fugaz de que o amor é como a água e que, sem ela, uma planta (flor) não pode viver. Na versão em inglês, criada por Norman Gimbel, tudo é muito mais claro: há uma flor, uma chuva, um homem e uma mulher (embora também de forma figurada). Para o público de língua inglesa, a “bossa nova” sempre cedia e oferecia uma versão simplificada e reduzida, ironicamente descendo ao pensamento direto de seus vizinhos de civilização. Aqui está a versão de Gimbel (aprovada por Jobim).
Aqua de Beber
Your love is rain, my heart the flower,
I need your love or I will die
My very life is your power,
will I wither and fade or bloom to the sky
Aqua de Beber,
Give the flower water to drink
Aqua de Beber,
Give the flower water to drink
The rain can fall on distant deserts,
the rain can fall upon the sea
The rain can fall upon the flower,
since the rain has to fall
let it fall on me
Aqua de Beber,
Give the flower water to drink
Aqua de Beber,
Give the flower water to drink
Embora a última estrofe da segunda parte — “since the rain has to fall let it fall on me” — soe imponente, no geral estamos em um contexto completamente diferente; formalmente (logicamente) tudo faz sentido. E somente agora, se voltarmos da versão anglo-americana calmante para a original brasileira, começaremos a perceber o quanto ela é nebulosa, onírica, como insiste em escapar de uma interpretação direta, conduzindo-nos a uma hermenêutica cromática noturna única, onde compreensão e incompreensão, clareza e obscuridade, expressão e silêncio, lógica e retórica estão misturadas entre si em proporções incríveis. A versão brasileira, nesse caso, revela-se algo semelhante à glossolalia ou a uma profecia que exige decifração; e como já sabemos de antemão que o autor do texto de forma alguma pode ser considerado um poeta iniciante, que ainda não aprendeu a construir declarações coerentes e estrofes rimadas significativas (Vinicius de Moraes já era um clássico reconhecido da poesia brasileira muito antes de seu fascínio pela “bossa nova”), só nos resta buscar essa decifração, estando preparados para as reviravoltas mais inesperadas de sentido.
Se voltarmos novamente ao refrão da versão original em português e prestarmos atenção à melodia específica, repetitiva e oscilante com a qual é cantado, reconheceremos sem erro que se trata de uma incantação, um feitiço ou uma fórmula religiosa repetida, pronunciada dentro de algum rito evocativo, provavelmente de origem africana. Então a palavra “camará” também fará sentido — uma corruptela de “camarada”, característica da pronúncia popular dos negros brasileiros. Portanto, podemos provavelmente concluir de nossa análise erudita que estamos lidando com um fragmento de algum canto litúrgico. E resta apenas determinar qual.
A resposta encontramos no rito religioso da capoeira, onde o círculo (roda), no qual se realiza a dança ritual, é apresentado como uma figura simbólica sobre a qual descem forças sagradas superiores. A música, as danças e as proclamações na capoeira têm caráter ritualístico e servem como forma de estabelecer comunicação com os mundos dos deuses e dos espíritos. Assim, em uma das partes do ritual mágico da capoeira, chamada “Louvação” ou “Chula”, realmente encontramos o fragmento que nos interessa. Durante esta parte do ritual, metade dos participantes proclama uma linha e a outra metade a repete. Este dualismo reflete a dualidade cósmica de cima/baixo, vida/morte, céu/terra, etc. Na linha de resposta, a segunda metade do círculo acrescenta a exclamação ritual “camará”, a mesma que encontramos na suave canção lírica de Tom Jobim.
Louvação
Iê, Viva meu Deus
Iê, Viva meu Deus, camará
Iê, Viva meu Mestre
Iê, Viva meu Mestre, camará
Iê, quem me ensinou
Iê, quem me ensinou, camará
Iê, a capoeira
Iê, a capoeira, camará
É Água de beber
Iê, Água de beber, camará
É ferro de bater
Iê, ferro de bater, camará
É ngoma de ngoma…
Assim, na bossa nova de Jobim, trata-se de um ritual de gratidão àquele que é chamado de «Senhor» (Mestre) e pode significar «mestre» ou «professor» (em um contexto secular), ou uma pessoa que guia o «clã» ou o espírito em um contexto religioso. Consequentemente, uma fórmula ritual é suavemente inserida na melodia popular, onde «água para beber» é acompanhada de um termo omitido, mas implícito: «ferro para bater»… Assim, o contexto semântico muda: não são as imagens que metaforicamente nos falam de amor, mas o amor, descrito explicitamente nas palavras da canção, torna-se uma referência codificada a relações mais fundamentais – iniciáticas, misteriosas – entre o homem e o «mestre», o «iniciador». Da mesma forma, a mencionada «água» e o não mencionado, mas implícito «ferro» (lança, faca, flecha) são duplicatas de elementos físicos – uma certa «água para beber», talvez uma bebida inebriante, e um certo «ferro para bater» – uma arma sagrada. Assim, passo a passo, ao tentar compreender uma canção popular banal e aparentemente transparente, chegamos a uma zona onde não restam vestígios das mais simples emoções amorosas: estamos diante de horizontes existenciais severos e fatais de transformações iniciáticas, mudanças de estados, confrontos perigosos e batalhas. Portanto, o medo do herói em relação ao amor pode facilmente ser reinterpretado como algo totalmente diferente: um terror sagrado diante da inevitabilidade da morte, representada no ritual de iniciação ou, no mínimo, o receio de participar de uma batalha ritual.
É também interessante que, na última linha do terceiro verso, de Moraes use a palavra mágoa (do latim macula), que no Brasil significa «encantamento», «feitiço», «magia negra» e «dor na alma», «sofrimento», «tristeza».
Outro exemplo de bossa nova, escrita pelos mesmos autores (Jobim/Moraes), desta vez tem mais a ver com o amor, mas novamente o coloca em um contexto religioso. Mas, neste caso, trata-se de misticismo cristão. Referimo-nos à famosa composição «Insensatez», que ganhou fama mundial após ser interpretada por Frank Sinatra (naturalmente, na versão em inglês – também a citaremos mais adiante para podermos comparar as culturas latino-americana e anglo-americana, contrastantes não só em um nível de alta filosofia, mas também no nível das composições populares mais simples). Na versão original em português, as palavras da canção são assim.
Insensatez
Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, por que você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado
Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado
Mais uma vez, nos encontramos em uma situação complicada. Trata-se da “bossa nova”, um gênero musical despretensioso, que tem soado nas ondas das estações de rádio especializadas em música leve por muitas décadas. E nessas palavras de Vinícius de Moraes, de fato, se menciona o amor. Mas amor por quem? Que tipo de amor? Mais uma vez, entramos em um contexto que, de maneira estranhamente discreta, nos afasta dos clichês banais e esperados em tal situação. Somos testemunhas de uma conversa de um homem com seu próprio coração. No entanto, o coração é o centro do ser humano, ou seja, há uma divisão, uma espécie de reflexividade borgiana, uma introspecção, uma sessão de um difícil monólogo/diálogo interno de arrependimento. Já é uma situação bastante incomum para uma canção popular. Aquele que se dirige ao seu coração o reprova por ter “feito, cometido insensibilidade”; esta expressão soa tão estranha em português quanto em russo – “cometer insensibilidade”. Mas isso é importante: o coração não é repreendido por ser insensível, mas por ter tornado a insensibilidade presente, trazido-a à existência, atualizando-a. O coração, como essência do ser humano, não pode ser insensível, pois, nesse caso, não seria mais um coração humano, ou seja, não teria chance de arrependimento, metanóia, transformação. Portanto, ele é julgado por suas ações, ou seja, por algo que é uma acidentalidade, e não a essência do coração. O coração cria a insensibilidade, gera-a.
Ao criar a insensibilidade, o coração faz “seu amor” chorar. Talvez seja uma moça, talvez um jovem, já que não sabemos o gênero daquele que narra. Mas pode ser algo mais – refere-se precisamente ao “seu amor”, ou seja, à dimensão interior do coração, direcionada de dentro para fora, como a intenção dos fenomenólogos ou o Sorge de Heidegger, “cuidado”, o que é confirmado nesta mesma linha: “sem cuidado”, “ohne Sorge”. Um coração fraco, apático, sem cuidado, incapaz de amar – isso é terrível. Vai contra a lógica da vida, contra a essência do ser humano, que sem amor deixa de ser ele mesmo. Mas o que é importante para nós: ainda não sabemos nada sobre os detalhes desse amor, sua estrutura, seu objeto, sua história. É uma situação arquetípica do coração e seus raios, que ele deve emitir – por si só, não importa em que direção ou para quem. Em outras palavras, chegamos a uma dimensão estritamente filosófica e metafísica: o julgamento do coração incapaz de amar. Este julgamento é terrível.
E a segunda metade da bossa nova finalmente nos convence de que, na primeira metade, também se tratava de coisas muito sérias. Aqui, o autor faz algo que geralmente não se encaixa na ideia de entretenimento popular. Ele começa a citar as “Sagradas Escrituras” e nos remete ao “Livro de Orações”. Além disso, insiste que devemos nos dedicar com toda a atenção e abertura às palavras profundas que estamos prestes a ler. E aqui está o que lemos nas “Sagradas Escrituras”: “Aquele que semeia o vento, colhe a tempestade”. Pare. O que isso tem a ver com a história de amor que mal se vislumbra com muito esforço na primeira metade da “bossa nova”? Você planta algo pequeno – colhe algo grande. Comete um erro em uma questão aparentemente insignificante, e isso se transforma em uma catástrofe. A verdade amplia as intenções, os propósitos (pelos quais Deus julga) e coloca o homem diante do julgamento. Aqui está o julgamento, o Juízo Final, a tempestade. O horizonte ameaçador da Segunda Vinda está delineado, e nos afrescos de Vinicius de Moraes estão esboçados os rostos dos severos arcanjos. E então, a “bossa nova” finalmente se eleva ao chamado profético: arrependam-se, filhos dos homens, mudem os seus caminhos, peçam perdão e misericórdia ao Senhor, vosso Deus, clamem “Senhor, tende piedade!” e talvez, se forem rápidos e sinceros, Ele ouvirá suas orações. Isso é “bossa nova”? Um gênero leve e popular? Uma canção que toca em elevadores e restaurantes? Parece que estamos sonhando. Realmente, estamos sonhando – são sonhos brasileiros, latino-americanos – uma estratégia eficaz do “realismo mágico”, uma semântica cromática de uma civilização única e especial, a civilização da Onda (assim se chama outra música emblemática de Jobim/Moraes).
Agora vejamos as palavras que Frank Sinatra pronunciou em sua versão em inglês (o tradutor é o mesmo – Norman Gimbel). Assim, podemos avaliar a distância entre as duas civilizações americanas – Norte e Sul, e nosso interesse aparentemente leviano em uma música popular e “despretensiosa” nos levará, por caminhos cíclicos, à área de estudo do Logos da civilização e, consequentemente, à filosofia.
How insensitive
How insensitive I must have seemed
when she told me that she loved me.
How unmoved and cold I must have seemed
when she told me so sincerely.
Why, she must have asked, did I just turn
and stare in icy silence?
What was I to say? What can you say
when a love affair is over?
Now she’s gone away and I’m alone
with the memory of her last look.
Vague and drawn and sad, I see it still,
all her heartbreak in that last look.
How, she must have asked, could I just turn
and stare in icy silence?
What was I to do? What can one do
when a love affair is over?
As diferenças são evidentes. Na versão em inglês, aparecem “ele” e “ela”, enquanto o Livro de Orações, o arrependimento e o coração desaparecem; o amor se transforma em um “romance amoroso” ou até mesmo em uma “aventura amorosa” (a love affair) mais grosseira. No lugar do ímpeto existencial aguçado, movido por um profundo sentimento religioso da pessoa, surge um “ele” frio e egoísta, ironicamente (embora com certa tristeza) ponderando: “o que se pode fazer quando o interesse por uma amante sentimental, de forma inadequada, se esgota completamente?”. É precisamente essa versão da canção que Frank Sinatra canta, e ao vê-lo, o herói da obra (na versão em inglês) parece completamente convincente. No lugar do impulso existencial místico-religioso da pessoa sul-americana, está o frio utilitarismo do pragmático senhor anglo-saxão.
É claro que na “bossa nova” há (e bastante) canções sobre o amor humano, sobre uma ampla gama de relacionamentos – sofrimento, desespero, êxtase, leveza e peso, mas toda vez o código cultural da civilização brasileira, de uma forma ou de outra, revela um núcleo místico-religioso profundo, que raramente se apresenta tão claramente e explicitamente como nas canções aqui analisadas, mas, ainda assim, pode ser identificado sem grande dificuldade. A “bossa nova” deve ser vista como uma das vertentes do “realismo mágico”, com especificidade brasileira e uma base filosófico-religiosa. Dificilmente encontraremos nela o princípio apolíneo, mas o dionisíaco, com certeza. É revelador que o próprio Vinicius de Moraes não considerasse seu alcoolismo pessoal como um vício e uma doença, mas como o caminho programático do poeta nos “tempos sombrios”. Ele é o autor do seguinte trocadilho: “O uísque é o melhor amigo do homem – é o cão engarrafado”. Uma sentença como essa poderia muito bem ser pronunciada pelo personagem Dionisio do romance de Mario Vargas Llosa, “Lituma nos Andes”.
Quem é “Você”? A bossa nova e, de forma mais ampla, o movimento da MPB (Música Popular Brasileira) não abordam apenas motivos existenciais, mas também contêm uma crítica social afiada. Por isso, no Brasil e na América Latina, a cultura musical serve como uma síntese de uma arte pura e até elitista (como a poesia refinada de Vinicius de Moraes ou as composições tardias de Jobim, construídas sobre um diálogo profundo com Debussy ou Ravel, revestido de uma aparência de “popularidade” brasileira e de “cotidianeidade” irônica) com o divertimento de palco, uma mensagem religioso-filosófica (a religião das águas), mas que também possui uma dimensão política. Esta é uma característica das “novas nações” — a arte aqui é sintética, abrangente, ainda não dividida em campos disciplinares estreitos. Por isso, os “sonhos crioulos”, cantados no palco ou descritos nos romances e contos dos “realistas mágicos”, geralmente carregam uma mensagem política. Um exemplo disso é a famosa canção de Chico Buarque de Hollanda, “Apesar de Você”, que se tornou um hino de protesto social no Brasil durante o período da ditadura. Nela, de forma alegórica, mas também bastante explícita, declara-se uma guerra cultural e diretamente política contra a figura coletiva que, em segredo ou abertamente, era odiada por toda a sociedade brasileira (e mais amplamente, latino-americana). Nesta canção, com conteúdo poético extremamente bem elaborado, vemos uma referência a um certo “você” (Você), que concentra em si a imagem do mal latino-americano.
Apesar de você
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
A questão sobre quem Chico Buarque tinha em mente com esse “você” (Você) tornou-se bastante polêmica, levando-o a ser convocado para explicações na polícia. O cantor foi forçado a contar uma história complicada, afirmando que a canção tratava de um desentendimento entre amantes, e que o “você” referia-se a uma moça que, ou recusou o amor do rapaz, ou o traiu. Naturalmente, toda essa história foi motivo de risos em toda a sociedade brasileira, pois a junta militar foi ridicularizada duplamente – pelo simples fato dessa canção e pelas explicações do cantor, tornando a situação ainda mais cômica.
No entanto, o fato de que Chico Buarque se referia à junta militar (1968-1980) com o “você” e ao “amanhã” como a libertação dela, não oferece uma resposta completa sobre a identidade ideológica contra a qual o cantor se posiciona e, por extensão, o que ele próprio defende e protege. De fora, pode parecer que a tese e a antítese, neste caso e em muitos outros, sejam a ditadura militar de direita (nacionalista, “fascista”), semelhante às de Pinochet, Stroessner, Duvalier ou Jorge Videla, em oposição ao movimento de protesto de esquerda. Ou seja, o perfil ideológico do “você” (Você) na canção de Buarque representa um ditador autoritário de extrema-direita e seu séquito servil (guarda, tontons macoutes haitianos, etc.). O protesto, por sua vez, representa uma figura média de um “esquerdista” (izquierdista), onde comunistas e liberais-democratas se unem em uma “frente popular” (no estilo da Frente Popular da França dos anos 30, de Léon Blum, quando socialistas e liberais se uniram contra a extrema direita e o fascismo). Mas essa visão nada mais é do que uma projeção eurocentrista direta, construída com base na mentalidade colonial: a periferia deve necessariamente (com atraso) reproduzir os mesmos processos que ocorreram anteriormente no centro.
Na verdade, o perfil ideológico desse “você” (Você) na América Latina é completamente diferente do que se pode imaginar. Isso significa que o perfil ideológico de seu oponente – o próprio Chico Buarque – também é completamente distinto. O ponto é que a junta militar na Argentina, que derrubou Perón, que seguia a “Terceira Posição”, assim como a junta militar no Brasil, no Chile e na maioria dos países latino-americanos do século XX, não era de forma alguma “nacionalista”, mas sim liberal, capitalista e alinhada aos Estados Unidos e à ordem global da oligarquia financeira. Esses regimes representavam ditaduras de direita liberal, opondo-se igualmente tanto à justiça social (socialismo, marxismo) quanto aos interesses nacionais, transformando os países latino-americanos em colônias diretas, governadas pelos Estados Unidos e rigorosamente seguidoras das receitas liberais. As juntas militares eram antissociais e antinacionais ao mesmo tempo, transformando as antigas colônias europeias em novas colônias político-econômicas dos Estados Unidos. Elas não se orientavam pela identidade dos próprios povos e sociedades, mas pela imitação, ao nível das elites político-econômicas, do modelo liberal-capitalista anglo-saxão norte-americano, combatendo a democracia justamente porque esta inevitavelmente expressaria a vontade das massas, orientadas social e nacionalmente, e muitas vezes ambas ao mesmo tempo. Esse perfil ideológico corresponde ao “você” (Você) da famosa canção de Chico Buarque, contra o qual estava dirigida toda a ira e desprezo do poeta e cantor, que personificava o povo brasileiro. Era um protesto contra o autoritarismo do liberalismo de direita e a política de completa dependência dos EUA, como vanguarda do sistema capitalista mundial. Tal regime rejeitava rigidamente quaisquer indícios de um Logos latino-americano, ignorando e suprimindo qualquer identidade autônoma. Por isso, na outra extremidade do sistema político, não estavam nem a direita nem a esquerda, mas sim portadores coletivos da filosofia da libertação, representados pelo próprio Chico Buarque. Claro, a filosofia da libertação tinha suas versões – incluindo a esquerda e social, e a direita e nacional –, mas a plataforma da maioria estava centralizada na ideia de afirmação de uma identidade especial, independente tanto da Europa quanto, especialmente, dos EUA, social, cultural e metafisicamente. A ideologia da junta representava algo diametralmente oposto: era o centro de um sistema alternativo que imitava o modelo anglo-saxão e, especificamente, o modelo norte-americano. Do ponto de vista dos EUA, o centro era a junta liberal, com seus flancos direito e esquerdo, unidos pelo reconhecimento fundamental do universalismo do Ocidente capitalista e pelo acordo incondicional com a dominação em todas as esferas – tanto político-econômica quanto epistemológica. Esse era o “você” odioso (Você), o perfil ideológico do ditador-supervisor colonial. O polo popular, que também incluía flancos direito e esquerdo, estava na filosofia da libertação, onde esses flancos eram a filosofia da libertação de esquerda (socialismo, marxismo, hegelianismo de esquerda) e a filosofia da libertação de direita (tradição, nação, soberania, independência – especialmente dos EUA). Assim, o núcleo da filosofia da libertação era mais plenamente representado pelo peronismo, onde elementos de direita e esquerda se uniam em uma síntese única.
Nesse caso, o “amanhã” em nome do qual cantava Chico Buarque representava justamente a vitória dos filósofos da libertação em todas as suas versões, afirmando livre e soberanamente a identidade especial da América Latina, o Logos de Ariel.
Em outra canção, que se tornou o hino da luta do povo brasileiro contra a junta, “Cálice”, o mesmo Chico Buarque aborda uma versão existencial da teologia cristã, unindo o tema da Oração no Getsêmani de Cristo (“Pai, afasta de Mim este cálice”) ao protesto social contra a ditadura pró-americana (no sentido de América do Norte) de direita liberal.
Сálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Neste texto, a ideia cristã de kenosis, ou autossacrifício, alcança um grau extremo de autenticidade em relação à realidade das camadas mais baixas da sociedade brasileira, submetida ao jugo de um ditador (descrito aqui mitologicamente como um monstro emergindo de um lago). O povo latino-americano é um sujeito de sofrimento insuportável, dor, humilhação e exploração. A forma mais elevada de kenosis latino-americana é o silêncio, sugerido tanto no título quanto nas numerosas repetições. O silêncio é a privação da palavra, ou seja, do Logos. O povo está condenado a um Logos incapaz de se expressar. Seu destino é uma existência muda, o alcoolismo como forma de sofrimento e esquecimento deliberados, ou a morte por asfixia, como no caso do ativista político Stuart Angel, morto pela junta durante a tortura, amarrado ao cano de escapamento.
Nesse contexto, o sofrimento, a dor e o terror do povo são expressos não apenas por um apelo à revolta e ao protesto social, mas por uma profunda introspecção, em uma submissão cristã indissociável de uma resistência espiritual ao mal liberal. Essa combinação de humildade e luta obstinada contra o mal constitui a base da teologia da libertação latino-americana, uma forma de catolicismo em que a ética cristã adquire um caráter intensamente existencial, equilibrando-se nos limites dos dogmas e refletindo fielmente a essência do doloroso despertar da identidade latino-americana. Nas palavras desta canção, praticamente impossíveis para o gênero popular de qualquer cultura mundial, vemos a mais alta expressão dessa teologia da libertação – com todos os seus paradoxos, rupturas existenciais e abertura ao elemento da dor e da pobreza.
Notas
[1] Holanda Sérgio Buarque de, Fausto Boris. História Geral da Civilização Brasileira. V. 1-11. São Paulo: Difel, 1975-1989.
[2] Bastide R. Bresil terre des contrastes. Paris; Montreal: L’Harmattan, 1999.
[3] O ngoma é um tambor sagrado usado em rituais de capoeira.
[4] A capoeira tem suas origens na dança marcial ritual africana “n’golo” (“n’golo”), parte integrante do ritual de iniciação no sul de Angola, e que retrata a dança das zebras – jovens guerreiros envolvidos em combate ritual entre si.
[5] Há um jogo de palavras no título: a palavra calíce, “tigela”, tem o mesmo som de cale-se, “fique em silêncio”.
Tradução: Raphael Machado