Uma breve história do caos: da Grécia à pós-modernidade. Parte 1

O caos para os gregos

Se a palavra χάος é grega, seu significado deve ser originalmente grego, ligado à semântica e ao mito e, portanto, à filosofia.

A própria raiz da palavra ‘caos’ é ‘abismo’, ‘bocejo’, ou seja, um lugar vazio localizado entre dois polos, na maioria das vezes entre o Céu e a Terra. Às vezes (em Hesíodo) entre a Terra e Tártaro, ou seja, a área abaixo do Inferno (Hades).

Entre o Céu e a Terra está o ar, portanto, em alguns sistemas posteriores de filosofia natural, o caos é identificado com o ar.

Neste sentido, o caos representa o território não-estruturado da relação entre as polaridades ontológicas e outras polaridades cosmogônicas. É no lugar do caos que surge a ordem (o significado original da palavra κόσμος é beleza, harmonia, ordem). A ordem é uma relação estruturada entre as polaridades.

O cosmo erótico-psíquico

No mito, Eros e/ou Psiquê aparecem (tornam-se, surgem) no território anteriormente ocupado pelo caos. Eros é o filho da plenitude (Porus, céu) e da pobreza (Phenia, terra) no Pireu de Platão. Eros une os opostos e os separa. Da mesma forma, Psiquê, a alma, fica entre a mente, o espírito, por um lado, e o corpo, a matéria, por outro. Eles chegam ao lugar onde reinava o caos, que desaparece, retrocede, desvanece, trespassado pelos raios da nova estrutura. É a estrutura de uma ordem – psíquica! – erótica.

O caos é assim a antítese do amor e da alma. Onde não há amor, reina o caos, mas ao mesmo tempo, é precisamente no lugar do caos – na própria zona do ser – que nasce o cosmos. Existe, portanto, uma contradição semântica e uma afinidade topológica entre o caos e suas antípodas: a ordem, o eros, a alma. Eles ocupam o mesmo lugar, o lugar do meio. Daria chamou esta área de “fronteira metafísica” e a tematizou em diferentes horizontes em seus escritos e discursos recentes. Entre uma e outra existe uma “zona cinzenta” na qual se pode buscar as raízes de qualquer estrutura. Isto é o que Nietzsche quis dizer, ou seja, que “somente aquele que traz o caos em sua alma é capaz de dar à luz uma estrela dançante”. A estrela em Platão, e posteriormente em muitas outras, é o símbolo mais contrastante da alma humana.

O caos em Ovídio

O segundo significado, que já pode ser adivinhado pelos gregos, mas que não é descrito por eles com muito rigor, é encontrado em Ovídio. Nas Metáforas ele define o caos nos seguintes termos: uma massa bruta e indivisa (rudis indigestaque moles) composta de sementes de coisas mal combinadas e em guerra umas com as outras (non bene iunctarum discordia semina rerum), que não tem outra propriedade que a gravidade inerte (nec quicquam nisi pondus iners). Esta definição é muito mais próxima do χόρα de Platão, ‘receptáculo do devir, do que do caos original, e ressoa com a noção de matéria. É a mistura de elementos que é enfatizada nesta matéria caótica. Também isto — a antítese da ordem e da harmonia, daí a discórdia de Ovídio — é a inimizade, que remete a Empédocles e seus ciclos de amor (φιλότης)/guerra, inimizade (νεῖκος). O caos como inimizade se opõe novamente ao amor, φιλία; mas aqui a ênfase não está no vazio, mas na plenitude última mas sem sentido e desorganizada, daí a “gravidade inerte” de Ovídio.

Os significados grego e greco-romano contrastam o caos com a ordem em igual medida, mas o fazem de forma diferente. Em princípio (para os primeiros gregos) é um vazio tão leve quanto o ar, cujo caráter sinistro é revelado na boca aberta de um leão atacante ou na contemplação de um abismo sem fundo. No helenismo romano, a propriedade do peso e da mistura vem à tona. Em vez de ar, é água ou mesmo lava vulcânica fervente, rubra e negra.

Caos como origem da cosmogonia

A cosmogonia e às vezes a teogonia da religião greco-romana começa com esta instância, com o caos. Deus cria a ordem a partir do caos. O caos é primordial, mas Deus é mais primordial, construindo o universo a partir de si mesmo e do não-si-mesmo. Afinal, se Deus é uma eterna afirmação, também se pode ter uma eterna negação. O relacionamento entre os dois pode ser de dois tipos: caos ou ordem. A seqüência pode ser uma ou a outra: se houver caos agora, haverá ordem no futuro. Se houver ordem agora, provavelmente ela se deteriorará no futuro e o mundo descerá ao caos, e então Deus restaurará a ordem e assim por diante em um período; daí a teoria dos ciclos cósmicos, claramente afirmada na “Política” de Platão, mas mais plenamente desenvolvida no hinduísmo e no budismo; daí a alternância contínua de épocas de guerra/amor de Empédocles.

Em Hesíodo, a cosmogonia começa com o caos. Em Ferécides , com a ordem (Zas, Zeus). O tempo pode ser contado da manhã, como os iranianos, ou da noite, como os semitas. O caos não se opõe a Deus, ele se opõe ao mundo de Deus.

Enquanto não houver ordem, a Terra não sabe que ela é a Terra. Porque nenhuma distância foi estabelecida. E assim ela se funde com o caos. A Terra se torna Terra quando o céu lhe pede em casamento e lhe dá um véu de casamento. É o cosmos, a decoração por trás da qual o caos se esconde. Assim é para Ferécides — em seu fascinante mito filosófico patriarcal.

O Caos desaparece no cristianismo — tohu va bohu

Na cristandade, o caos desaparece. O cristianismo conhece apenas um Deus e sua criação, ou seja, a ordem, a paz. Uma vez “a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo”¹ (תֹ֙הוּ֙ וָבֹ֔הוּ וְחֹ֖שֶׁךְ עַל-פְּנֵ֣י תְהֹ֑ום ). A palavra hebraica tohu significa precisamente vazio, ausência e se encaixa bem com o conceito grego de caos. Já nesta frase, com a qual começa a primeira seção do Antigo Testamento, tohu é mencionado duas vezes, algo que se perde completamente na tradução — a primeira vez é como “sem visão”, e a segunda vez no plural (עַל-פְּנֵ֣י תְהֹ֑ום) na combinação “sobre a face do abismo”, literalmente “acima da face de tohu”. A palavra bohu (בֹ֔הוּ) na combinação tohu va bohu (תֹ֙הוּ֙ וָבֹ֔הוּ) não é mais usada na Bíblia (exceto Isaías 34:11), que simplesmente cita a expressão desde o início do Gênesis. Assim, literalmente, “a terra era caos e ? e escuridão (hsd) acima da face do caos (ou na face do caos)”. No sentido grego, pode-se dizer que “a terra estava escondida pelo caos”, o que a impedia de ver (o céu, criado na primeira linha do Gênesis) que a terra era a terra.

Aqui Deus claramente cria não a partir do caos, mas a partir do nada. E cria simultaneamente um espírito claro (o Céu) e uma carne escura (a Terra). O caos é o que está entre eles, o que esconde seu verdadeiro relacionamento.

O homem em seu lugar no espaço. Para não cair no abismo

O resto do processo de criação já transforma o caos em cosmos. O Espírito de Deus, pairando sobre as águas, constrói a ordem no lugar da desordem. É assim que aparecem os luminares, as plantas, os animais, as pessoas e os peixes; contudo, este ato cosmogônico não foi de grande interesse para os judeus (ao contrário dos gregos), sua religião tratava de um mundo já criado (o cosmos), que precisava construir um relacionamento adequado com Deus, o Criador, através do homem. O homem estava no lugar do caos. Ele podia escorregar para o abismo de Abadom² ou ascender ao céu, como Elias. No Livro de Jó (28:22), Abadom — como a terra, Chthonia, em Ferécides — é mencionado no contexto do véu. O véu é o cosmos. O homem é o mundo, mas é baseado no caos. Isto é verdade, mas a teologia judaica e mais tarde a teologia cristã quase nunca se referem ao caos. Aqui tudo é personificado e até mesmo o inimigo humano, o diabo, não é um elemento moldado, mas a personalidade distinta de um anjo caído. Na era cristã, o caos se retira para a periferia, seguindo o judaísmo de muitas maneiras, especialmente o judaísmo posterior.

Gás: o caos dos alquimistas holandeses

Houve um certo interesse pelo caos durante a Renascença, especialmente entre os alquimistas. Assim, a palavra “gás” vem do alquimista holandês Vanee Helmont, que a entendeu como o “estado gasoso da matéria” e, em holandês, como o “caos”. Nesta aparência mais prosaica, o caos-gás encontra um lugar na química e na física modernas, mas tem pouco a ver com a grandiosa concepção cosmogônica e até mesmo ontológica da antiga metafísica.

Caos: a essência não reconhecida do materialismo

Uma nova onda de fascínio pelo caos já está presente no século XX. Com o foco crescente na cultura pré-cristã, especialmente greco-romana, muitas teorias e conceitos antigos foram redescobertos. Entre eles estava a complexa noção de caos, que oferecia um movimento de pensamento cosmogônico muito diferente da narrativa criacionista do cristianismo, em cuja reversão se baseia a ciência materialista moderna. Vimos como a primeira interpretação do caos estava próxima da matéria, e é até estranho que os materialistas há muito tempo tenham relutado em vê-la, apesar do fato de que os paralelos entre as ideias sobre a matéria e o caos são marcadamente consonantes e semelhantes. No entanto, apesar do fascínio pelo caos, nenhuma conclusão abrangente foi tirada sobre esta interpretação do materialismo, e o estudo do caos tem estado na periferia da filosofia.

Imprevisibilidade

Na física, a teoria do caos começou a tomar forma na segunda metade do século XX entre aqueles cientistas que se preocupavam principalmente com estados de não-equilibrio, processos não lineares, equações não integráveis e séries divergentes. Durante este período, as ciências físicas e matemáticas distinguiram todo um vasto campo que não se prestava a modelos clássicos de cálculo. Isto pode ser genericamente chamado de ‘imprevisibilidade’. Um exemplo de tal imprevisibilidade é a bifurcação: um estado de um processo (por exemplo, o movimento de uma partícula) que, com o mesmo grau de probabilidade em um determinado momento, pode fluir em uma direção ou noutra direção completamente diferente. Se a ciência clássica tivesse explicado tal situação por uma compreensão insuficiente do processo ou pelo conhecimento dos parâmetros totais de funcionamento do sistema, o conceito de bifurcação teria sugerido considerar tal situação como um fato científico e passar a novas formalizações e métodos de cálculo, o que inicialmente permitiria tais situações e geralmente dependeria delas exatamente. Isto foi resolvido através da referência ao cálculo probabilístico, à lógica modal, à construção de um modelo decadimensional do mundo-folha (na teoria das supercordas), à inclusão de um vetor de tempo irreversível dentro de um processo físico (em vez de um tempo Newtoniano absoluto ou mesmo incluindo o tempo no sistema tetradimensional de Einstein). A área inteira é o que, na física moderna, pode ser chamado de ‘caos’. Neste caso, ‘caos’ não se refere a sistemas que não podem ser calculados de forma alguma e nos quais não existe nenhum modelo. O caos pode ser calculado, influenciado, explicado e modelado, como todos os outros processos físicos, mas somente com a ajuda de construções matemáticas mais complexas, operações e métodos especiais.

Subjugando o caos sem a ordem

Podemos definir todo o campo de pesquisa dos processos caóticos (como entendidos pelos físicos contemporâneos) como a busca pelo domínio do caos. É importante enfatizar que não se trata de construir um cosmos a partir do caos. É antes o oposto: a construção do caos a partir dos restos, a partir das ruínas do espaço. O caos não era para ser erradicado, mas sim apreendido e parcialmente aprofundado. Para controlar e moderar, não para conquistar; e como o nível de caos estava longe de estar avançado em todos os lugares, o caos também tinha que ser induzido artificialmente, empurrando uma ordem racionalista decadente em direção a ele. Assim, o estudo do caos adquiriu uma espécie de dimensão moral: a transição para sistemas caóticos e a arte de sua gestão foi percebida como um sinal de progresso — científico, técnico e, mais tarde, social, cultural e político.

A nova democracia como caos social

A partir da física fundamental e da filosofia do mito, as teorias do caos foram se deslocando gradualmente para o nível sócio-político. Enquanto a democracia clássica assumia um sistema hierárquico baseado exclusivamente em decisões majoritárias, a nova democracia procurava delegar o máximo de poder possível aos indivíduos. Isto inevitavelmente leva a uma sociedade caótica e muda os critérios para o progresso político. Em vez de ordená-la, os progressistas procuram novas formas de controle – e estas novas formas estão se afastando cada vez mais das hierarquias e taxonomias clássicas, gradualmente convergindo com os paradigmas da nova física com sua prioridade dada ao estudo da esfera do caos.

Pós-modernidade: o caos ataca

Na cultura, representantes do pós-modernismo e do realismo crítico (r.o.o.) abraçaram isto e começaram a aplicar com entusiasmo teorias físicas à sociedade. Neste caso, houve uma transição do modelo quântico, não projetado para a sociedade, para a sinergia e a teoria do caos. A sociedade doravante não tinha que criar nenhum sistema hierárquico normativo, mudando para um princípio de rede — para o conceito de rizoma (Deleuze/Guattari). O modelo consistia em situações nas quais os doentes mentais assumiam o poder sobre os médicos clínicos e construíam seus próprios sistemas de libertação. Nisso, os progressistas viram o ideal de uma “sociedade aberta”, geralmente livre de regras e leis rígidas, mudando suas atitudes de acordo com impulsos puramente aleatórios. A bifurcação se tornaria uma situação típica e a imprevisibilidade geral das massas esquizômicas seria incorporada em teorias complexas não lineares. Tais massas poderiam ser controladas, mas não diretamente, e sim indiretamente, moderando seus pensamentos, desejos e impulsos aparentemente espontâneos, mas na realidade estritamente predeterminados. A democracia era agora sinônimo de caos. As massas não estavam apenas escolhendo a ordem, elas estavam derrubando-a, levando a causa à desordem total.

Pacifismo e internalização do caos

Chegamos assim ao elo entre o caos e a guerra. Os progressistas tradicionalmente rejeitam a guerra, insistindo na tese historicamente duvidosa de que “as democracias não combatem umas contra as outras”. Se a democracia está intrinsecamente ligada ao enfraquecimento da normatividade e da ordem, da hierarquia e da organização cósmica da sociedade, então mais cedo ou mais tarde a história levará a democracia ao puro caos (foi exatamente o que Platão e Aristóteles acreditaram, demonstrando de forma convincente que é logicamente inevitável). Assim, a abolição dos Estados, seguindo a noção pacifista de que a guerra é uma parte intrínseca do Estado, deveria levar à paz universal (la paix universelle), já que de fato e de jure as instâncias legítimas da guerra desapareceriam. No entanto, os Estados têm a função de harmonizar o caos e, para isso, às vezes descarregam suas energias destrutivas para o exterior, em direção ao inimigo. Assim, a guerra no exterior ajuda a manter a paz no interior.

Mas tudo isso está na democracia clássica — e especialmente nas teorias realistas. A nova democracia rejeita a prática de externalizar o lado obscuro do homem no contexto da mobilização nacional. Filósofos mais responsáveis (como Ulrich Beck, por exemplo) propõem, ao invés de internalizar o inimigo, colocar o Outro dentro de si mesmo. Na verdade, isto é um apelo à esquizofrenia social (no espírito de Deleuze e Guattari), a uma divisão de consciência. Se a democracia se transforma em caos, o cidadão normativo desta democracia se torna um indivíduo caótico. Ela não está caminhando para um novo cosmo; pelo contrário, está expulsando os remanescentes do cosmo, taxonomias e ordem — incluindo gênero, família, racionalidade, espécie, etc. — para fora de si mesmo permanentemente. Ele se torna um portador do caos, mas — ao contrário da fórmula de Nietzsche — progressistas fazem tabu do ato de dar à luz uma “estrela dançante” — a menos que seja um bar de strip, Hollywood ou Broadway. O cidadão esquizofrênico não deve construir um novo cosmos sob nenhum pretexto: não é para isso que o antigo foi tão duramente conquistado. A democracia do caos é pós-ordem, pós-cosmos. Ao destruir o velho, propõe-se não construir algo novo, mas afundar-se no prazer da decadência, sucumbir ao fascínio de ruínas, fragmentos e pedaços. Aqui, nos níveis inferiores de degeneração e degradação, abrem-se novos horizontes de metamorfose e transformação. Como não há mais hierarquia entre a baixeza e o heroísmo, o prazer e a dor, a inteligência e a idiotice, o que conta é o próprio fluxo, o estar nele, o estado de conexão com a rede, com o rizoma. Aqui tudo está lado a lado e infinitamente distante ao mesmo tempo.

Esquizofrenia

Ao fazer isso, a guerra não desaparece, mas é colocada dentro do indivíduo. O indivíduo caótico faz a guerra consigo mesmo, exacerba a divisão. Etimologicamente, esquizofrenia significa “dissecação”, “corte”, “desmembramento” da consciência. O esquizofrênico, embora externamente pacífico, vive em um estado de ruptura violenta. Ele permite que a guerra entre. É assim que a hipótese de Thomas Hobbes sobre o “estado natural” da humanidade, descrita por este autor como caos e guerra de todos contra todos, é justificada em uma nova reviravolta. Só que não é um estado ‘natural’ inicial, mas um estado posterior, que não precede a construção de sociedades e estados hierárquicos, mas segue seu colapso. Temos visto que o caos é o oposto do cosmos, assim como a inimizade é o oposto do amor em Empédocles. Vimos também que o eros e o caos eram alternativas ao topos do grande caminho do meio. Assim: caos é guerra, mas não toda guerra, porque até mesmo a criação de ordem é guerra, violência, domar os elementos e colocá-los em ordem; caos é uma guerra especial, uma guerra total, que penetra profundamente, é uma guerra esquizóide, que captura a pessoa inteira em sua teia rizomática.

Guerra total como guerra do caos

Esta guerra esquizofrênica total não tem território claramente definido. Um torneio de cavaleiros só foi possível após o espaço ter sido delimitado. As guerras clássicas tinham teatros de guerra e campos de batalha. Para além destes limites estava o espaço. O caos foi atribuído a zonas de paz estritamente designadas. A guerra moderna da democracia caótica não conhece fronteiras. Ela é travada em todos os lugares através de redes de computadores, drones e os estados mentais dos blogueiros que permitem brilhar a divisão subjacente.

A guerra moderna é, por definição, uma guerra de caos. É aqui que entra o conceito de discórdia, ‘inimizade’, que encontramos em Ovídio e que é inerente a algumas interpretações bastante antigas do caos. O caos se baseia precisamente na inimizade — e não na inimizade de uns contra outros, mas de todos contra todos, e o objetivo da guerra do caos não é a paz ou uma nova ordem, mas aprofundar a inimizade até as últimas camadas da personalidade humana. Tal guerra procura privar o homem de sua conexão com o cosmos e, ao fazê-lo, privá-lo do poder criativo para criar um novo cosmos, o nascimento de uma nova estrela.

Esta é a natureza democrática da guerra. Ela é travada não tanto pelos estados, mas por indivíduos histericamente divididos. Aqui tudo é distorcido: estratégia, tática, relação entre técnica e homem, velocidade, gesto, ação, ordem, disciplina, etc. Tudo isso já foi sistematizado na teoria da guerra centrada na rede. Desde o início dos anos 90, a liderança militar dos Estados Unidos tem como objetivo implementar a teoria do caos na arte da guerra. Em 30 anos, este processo já passou por muitas fases.

A guerra na Ucrânia trouxe consigo precisamente esta experiência: a experiência direta de enfrentar o caos.

Notas

1 Gênesis 1:2

2 A conexão entre o abismo de Abadom, localizado abaixo do inferno, o sheol (como análogo do Tártaro nos gregos) e o deslize é perfeitamente demonstrada nos trabalhos de E. A. Avdeyenko. Ver: AVDEYENKO, E. A. Psalms: a biblical worldview. Moscou: Classis, 2016.

Tradução: Augusto Fleck