A Soberania Ideológica em um Mundo Multipolar
Abas primárias
No mundo moderno, um modelo multipolar está claramente tomando forma – quase tomando forma. Ele substituiu a unipolaridade que foi estabelecida após o colapso do Pacto de Varsóvia e especialmente da URSS. O mundo unipolar, por sua vez, substituiu o bipolar, no qual o campo soviético se opunha geopoliticamente e ideologicamente ao Ocidente capitalista. Estas transições entre os diferentes tipos de ordem mundial não aconteceram da noite para o dia. Alguns aspectos mudaram, mas outros permaneceram os mesmos por inércia.
Dependendo da mudança em todo o quadro planetário no nível geopolítico geoestratégico, a natureza ideológica de todos os atores ou polos globais também foi modificada.
Uma análise mais profunda dessas transformações ideológicas – passado, presente e futuro – é essencial para o planejamento estratégico.
E embora o governo russo tenha desenvolvido uma tradição lamentável de resolver problemas apenas à medida que eles surgem e priorizando apenas respostas a desafios imediatos (como dizem hoje “agir no momento”), ninguém está livre de mudanças ideológicas globais. Assim como a ignorância da lei não isenta de responsabilidade, a recusa em compreender os fundamentos da visão de mundo da ordem global e suas mudanças não alivia de forma alguma as autoridades – a Rússia como um todo – das profundas leis inerentes à esfera da ideologia. Qualquer tentativa de substituir a ideologia por puro pragmatismo pode ter um efeito – e mesmo assim apenas relativo e sempre reversível – apenas a curto prazo.
Em um mundo bipolar, respectivamente, existiam duas ideologias globais –
O liberalismo (democracia burguesa) definia a ideia do campo capitalista, o Ocidente global,
O comunismo era a Ideia de um Oriente socialista alternativo.
Havia uma ligação inextricável entre os polos geopolíticos – Oriente-Ocidente e o zoneamento estratégico-militar correspondente do mundo (Poder Terrestre, Poder Marítimo, Poder Aéreo e, finalmente, o espaço exterior – Arma Cósmica) e duas ideologias respectivas. Esta conexão influenciou tudo – invenções técnicas, economia, cultura, educação, ciência, etc. A ideologia captura não só a consciência, mas também as próprias coisas. A partir de certo ponto, passou do nível da polêmica sobre questões filosóficas e éticas globais para a competição da coisas, produtos, gostos, etc. Mas a ideologia, no entanto, predeterminou tudo – até os menores detalhes.
Olhando para o futuro, deve-se notar que a China nas condições de um mundo bipolar não era um pólo independente. Inicialmente, o maoísmo fazia parte do campo oriental. E após a morte de Stalin, começou um resfriamento entre a URSS, juntamente com seus leais satélites e a China, mas estritamente dentro da estrutura do bloco comunista. A China começou a seguir uma linha geopolítica independente apenas com Deng Xiaoping, quando Pequim entrou na era das reformas, e os processos de degradação em larga escala começaram na URSS. Mas na escala mundial, a China não desempenhou à época nenhum papel sério – para não mencionar decisivo – (como agora).
É importante notar que o domínio decisivo da ideologia não se deu apenas na URSS e nos países socialistas. Foi exatamente o mesmo no Ocidente. Se no Oriente era o comunismo, no Ocidente a ideologia dominante era (e ainda é) o liberalismo. Ao mesmo tempo, a abordagem burguesa flexível procurou não apenas suprimir e excluir sua ideologia oposta, mas antes transformá-la, não destruí-la, mas pervertê-la, neutralizá-la. Assim, juntamente com os partidos e movimentos marginais, a maioria abertamente comunistas e pró-soviéticos, havia esquerdistas “domesticados” – a maioria social-democratas ou liberais de esquerda que aceitavam os postulados básicos do capitalismo, mas esperavam corrigi-los no futuro através de reformas graduais em uma linha socialista. Na Europa, a esquerda era mais forte. Nos EUA – o reduto do Ocidente capitalista liberal – eles estavam sob a dura pressão ideológica e administrativa das autoridades. Por razões ideológicas.
Quando o Pacto de Varsóvia foi dissolvido e a URSS entrou em colapso, um modelo unipolar tomou forma. No nível geopolítico, ele correspondia ao domínio exclusivo do Ocidente, sua conquista de inegável superioridade e liderança total sobre todo o resto – incluindo oponentes potenciais (principalmente sobre os restos do Bloco Oriental representado pela Rússia nos anos 90 do século XX). Isto se reflete nos documentos estratégicos mais importantes dos Estados Unidos dos anos 90 – a doutrina militar do “domínio de espectro total” e a prevenção do surgimento na Eurásia de uma entidade geopolítica capaz de limitar de alguma forma o controle planetário dos EUA. Isto foi chamado de “momento unipolar” (C. Krauthammer).
O domínio ideológico do liberalismo em escala mundial correspondia à unipolaridade geopolítica.
Nos anos 30, o comunista italiano Antonio Gramsci propôs usar o termo “hegemonia” principalmente como uma expansão mundial da ideologia capitalista. Após a queda da URSS, tornou-se óbvio que a hegemonia militar, econômica e tecnológica do Ocidente era acompanhada por outra forma de hegemonia – ideológica – ou seja, a propagação total do liberalismo. Foi assim que uma ideologia começou a prevalecer em quase todo o mundo – a ideologia liberal. Ela foi construída sobre os princípios básicos que a hegemonia considerava e impunha como normas universais:
individualismo, atomização social,
economia de mercado,
unificação do sistema financeiro mundial,
democracia parlamentar, sistema multipartidário,
sociedade civil,
desenvolvimento tecnológico e, sobretudo, “digitalização”,
globalização,
a transferência de mais e mais poderes dos Estados nacionais para autoridades supranacionais – como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde, a União Europeia, a Corte Europeia de Direitos Humanos, o Tribunal de Haia e assim por diante.
No mundo unipolar, esta ideologia se tornou não apenas ocidental, mas a única, pan-humana, universal. A China a aceitou em termos de economia e globalização dos mercados. A Rússia da era Iéltsin – como um todo (de alguma forma pervertida).
E mais uma vez, como no mundo bipolar, o campo da ideologia não se limitou às mais altas esferas da política, ele permeou tudo – educação, cultura, tecnologia. Os próprios objetos e dispositivos técnicos do mundo unipolar eram uma espécie de “prova” do triunfo ideológico do liberalismo. Os próprios conceitos de “modernização” e “progresso” tornaram-se sinônimos de “liberalização” e “democratização”. E assim, o Ocidente, ao mesmo tempo em que fortaleceu seu poder ideológico, fortaleceu o controle político e militar-estratégico direto.
A Rússia de Iéltsin foi uma ilustração clássica desta unipolaridade:
desamparo e passividade na política internacional,
seguir cegamente os curadores ocidentais na economia, dessoberanização,
uma tentativa das elites compradoras de se integrarem ao capitalismo global a qualquer custo.
A Federação Russa foi criada sobre as ruínas da URSS como parte de um mundo unipolar, jurando fidelidade aos princípios básicos do liberalismo da Constituição de 1993.
Em condições de unipolaridade, o liberalismo avançou ainda mais em seu individualismo e tecnocracia. Uma nova etapa começou quando a política de gênero, a teoria crítica da raça, o feminismo, a preocupação exagerada com todos os tipos de minoria, veio à tona, bem como no horizonte do futuro próximo – a transição através da ecologia profunda para o pós-humanismo, a era dos robôs, ciborgues, mutantes e Inteligência Artificial. As embaixadas americanas ou bases militares da OTAN em todo o mundo se tornaram as representações ideológicas do movimento global LGBT+. Os sinais LGBT+ nada mais são do que uma nova edição do liberalismo avançado.
Mas o “fim da história”, ou seja, o triunfo do liberalismo global, que os globalistas (por exemplo, Fukuyama) esperavam, não aconteceu.
A hegemonia começou a vacilar. Na Rússia, Putin chegou ao poder, que com uma mão de ferro tomou um rumo para restaurar a soberania, ignorando a pressão ideológica de agentes externos e internos de hegemonia (em princípio, ambas partes de um único todo – a estrutura geral do liberalismo mundial). A China irrompeu entre as potências mundiais, mantendo o poder exclusivo do Partido Comunista e protegendo cuidadosamente a sociedade chinesa contra os aspectos mais destrutivos do globalismo ideológico – hiper-individualismo, política de gênero, etc.
Assim, o próximo tipo de ordem mundial começou a emergir – um modelo multipolar.
E aqui a questão da ideologia adquire maior importância, torna-se decisiva. Hoje, devido à inércia do mundo unipolar (que por sua vez herda a ideologia de um dos pólos do Ocidente capitalista bipolar), o liberalismo mundial, de uma forma ou de outra, mantém a função de sistema operacional de pensamento. Até agora, nenhum dos pólos emergentes de pleno direito – ou seja, nem a China nem a Rússia – desafiou o liberalismo como um todo. Sim, a China rejeita
a democracia parlamentar,
as interpretações ocidentais dos direitos humanos,
a política de gênero, e
o individualismo cultural.
A Rússia, por outro lado,
insiste fortemente, antes de mais nada, na soberania geopolítica,
coloca o direito nacional sobre o direito internacional, e
cada vez mais começa a caminhar para um conservadorismo (ainda vago e não articulado).
Ao mesmo tempo, tanto a Rússia quanto a China (especialmente quando atuam em conjunto) são capazes, na prática, de garantir sua soberania no nível estratégico e geopolítico. Mas o próximo passo é necessário: avançar finalmente para a multipolaridade ideológica plena e opor à ideia liberal a Ideia russa, a Ideia chinesa e, de modo geral, a Ideia multipolar.
Deve-se notar que no confronto ideológico com o Ocidente, alguns países e movimentos islâmicos foram muito mais longe – principalmente o Irã, assim como o Paquistão, e até mesmo algumas organizações radicais como o Talibã (banido na Rússia). A Turquia, o Egito e até mesmo parcialmente os países do Golfo também estão se movendo agora cada vez mais na direção da soberania. Isso significa que eles desafiam cada vez mais a hegemonia ideológica do liberalismo.
Mas até agora nenhum país do mundo islâmico é um polo de pleno direito. No caso deles, a revolta ideológica contra a hegemonia liberal está mais adiantada que a revolta geopolítica.
A idéia chinesa não é difícil de ser capturada. Ela é expressa
primeiro, na versão chinesa do comunismo e no completo monopólio do PCC sobre o poder (e o PCC é precisamente uma força ideológica),
em segundo lugar, na ideologia confucionista, cuja defesa é cada vez mais abertamente assumida, especialmente sob Xi Jiangping),
em terceiro lugar, está a solidariedade profunda e orgânica da sociedade chinesa (uma identidade chinesa muito forte e ao mesmo tempo flexível transforma qualquer chinês, onde quer que ele viva, e cidadão de qualquer país que ele seja, em um portador natural da identidade, tradição, civilização e suas estruturas chinesas).
As coisas são muito piores na Rússia. Por inércia dos anos 90, atitudes liberais, valores e diretrizes continuam a prevalecer na sociedade russa. O mesmo observamos na economia capitalista, na democracia parlamentar, na estrutura da educação, da informação e da cultura. O objetivo proclamado abertamente pelo governo russo é a “modernização” e a “digitalização” – às vezes se acrescenta a “privatização”. Quase todas as avaliações de eficiência e eficácia, bem como os próprios objetivos de quaisquer transformações, são copiados diretamente do Ocidente. Há algumas diferenças apenas na questão da restrição da política de gênero e do ultraindividualismo. O próprio Ocidente liberal a exagera deliberadamente e a inflaciona. Mas a fim de atacar cada vez mais a Rússia. A atual guerra fria do Ocidente contra a Rússia é pura guerra ideológica. Mas no caso da Rússia contemporânea, esta não é a luta do liberalismo contra o iliberalismo em larga escala, mas do liberalismo puro contra o “liberalismo” impuro, um “subliberalismo” parcial, fragmentário.
Na Rússia, hoje, tudo depende pessoalmente de Putin. Se ele soltar o pulso, ou, Deus nos livre, nomear como seu sucessor uma figura fraca e indistinta – tudo deslizará instantaneamente para os anos 90. A Rússia saiu dos anos 90 graças a Putin, mas devido à falta de uma ideologia russa independente, uma contra-hegemonia ideológica plena, este resultado não pode ser considerado irreversível.
A Federação Russa de hoje é quase perfeita e autossuficiente, um polo estratégico e político, mas ideologicamente não é um polo. Não agora.
E é aqui que começam os problemas. Um retorno inercial à ideologia soviética é impossível. Embora a justiça social e a grandeza imperial (especialmente na época de Stálin) não sejam apenas soviéticas, mas historicamente valores e diretrizes russas.
A Rússia precisa de uma nova forma de ideologia iliberal, uma ideologia civilizacional de pleno direito, que tornará irreversíveis as realizações de Putin e promoverá a Rússia ao status de um verdadeiro polo de pleno direito e sujeito soberano na ordem mundial multipolar.
Esta é a tarefa número um para a Rússia.
Estratégia, e não apenas táticas, determina o futuro e a transferência de poder para a era pós-Putin, e as necessárias reformas de poder, gestão administrativa, economia, educação, cultura e esfera social, há muito necessárias. Sem uma ideologia plena nas condições da multipolaridade, não se pode realizar reformas patrióticas, soberanas. Mas este caminho é incompatível com o liberalismo em nada – nem nas premissas, nem nos últimos desafios pós-humanistas e LGBT.
Para que a Rússia exista, não deve mais haver liberalismo na Rússia.
É aqui que reside a chave do que falamos em publicações anteriores em Nezygar – a transição para o terceiro polo – ideológico! – do futuro russo: do liberalismo pró-ocidental dos anos 90 (passado) através dos compromissos e da esterilidade ideológica (à beira do cinismo) do presente. Continuaremos este tema nos próximos artigos desta série.
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