O fator Wagner e a tese da Justiça
Abas primárias
Ao longo da Operação Militar Especial, a empresa militar privada Wagner e Evgeny Prigozhin se estabeleceram com confiança no centro das atenções da sociedade russa e do público global. Para os russos, eles se tornaram o principal símbolo de vitória, determinação, heroísmo, coragem e firmeza. Para o inimigo: uma fonte de ódio, mas ao mesmo tempo medo e horror. O que é importante é que Prigozhin não está simplesmente liderando a unidade mais batalhadora, vitoriosa e imparável entre as forças armadas da Rússia, mas ao mesmo tempo está expressando aqueles sentimentos, pensamentos, demandas e esperanças que vivem no coração das pessoas em guerra, daqueles engajados na guerra plenamente e até o fim, irreversivelmente imersos em seu elemento primordial.
Prigozhin aceitou esta guerra até o fim, até o fundo, até as últimas profundezas. Esse princípio é compartilhado pelos integrantes do Grupo Wagner e por todos aqueles que caminham nessa direção e rumo ao mesmo objetivo — a difícil, sangrenta, quase inatingível, mas tão desejada e almejada Vitória. O Grupo Wagner não é uma empresa militar privada. O dinheiro não tem nada a ver com isso. É uma irmandade de guerreiros, uma guarda russa, que Evgeny Prigozhin reuniu a partir daqueles que responderam ao chamado da Pátria em seu momento mais difícil e foram defendê-la, prontos para pagar qualquer preço.
Você pode naturalmente perguntar: E quanto aos nossos outros guerreiros? E a milícia do Donbass, que luta em condições desumanas desde 2014, esquecida por todos, mas firme em seus postos? E os nossos voluntários que por sua própria vontade foram para as frentes da nova Guerra da Pátria que reconheceram por trás do nome impreciso “Operação Militar Especial”? O que dizer, afinal, das tropas regulares de diferentes unidades que estão esmagando o inimigo e perdendo seus irmãos em confrontos ferozes? E quanto aos heroicos chechenos de Ramzan Kadyrov? Claro, todos eles são heróis e todos carregam as partículas inestimáveis de nossa Vitória comum, à qual se entregaram até o fim.
Mas Evgeny Prigozhin e o Grupo Wagner são diferentes. Eles não estão apenas à frente dos demais, nos setores mais difíceis da frente, avançando metro a metro, casa a casa, rua a rua, vila a vila, cidade a cidade com tenacidade sobre-humana, libertando sua terra natal de um inimigo cruel, vil e maníaco. Eles deram um estilo a esta guerra, tornaram-se seus símbolos, encontraram as palavras mais precisas e sinceras para expressar o que está acontecendo. Este é um dos casos mais raros em que façanhas militares, já incríveis em seu significado e escala, são acompanhadas por declarações ideológicas igualmente pungentes que são compreensíveis para todos na Rússia.
Esta guerra é uma guerra por justiça. Está sendo travada contra o mal e a violência, contra a mentira e o engano, contra a crueldade e a impostura. No entanto, se este for o caso, então é dirigido não apenas contra o inimigo direto, que é o Nazismo Ucraniano e o Ocidente liberal globalista que o apoia, mas também contra a injustiça que às vezes está sendo cometida dentro da própria Rússia. A guerra dos Wagner é uma guerra popular, uma guerra de libertação, uma guerra purificadora. Não aceita meias medidas, acordos, concessões e negociações nas costas dos guerreiros heróis. O Grupo Wagner valoriza muito a vida: tanto a sua quanto a do inimigo. E valoriza a morte – o único preço pelo qual a Vitória é paga, aquilo pelo qual apenas a morte pode ser paga, e nada mais.
A apoteose estética é o filme programático de Prigozhin – Os Melhores no Inferno (Лучшие в аду, 2022). Aqui está o novo Hemingway, o novo Ernst Jünger.
Este grande filme é sobre o elemento primordial da guerra, o custo da vida e da morte, as profundas transformações existenciais pelas quais uma pessoa passa quando se vê imersa no processo inexorável de confronto mortal com um inimigo – um inimigo que não é algo radicalmente diferente, mas o reverso de si mesmo. Prigozhin não está simplesmente travando uma guerra; ele compreende a guerra, ele aceita sua terrível lógica, ele livremente e soberanamente entra em seu elemento, e é por isso que ele é um pesadelo para o inimigo.
É óbvio que para o regime nazista de Kiev, que não tem tais símbolos e que genuinamente teme e odeia o Grupo Wagner acima de tudo nesta guerra, bem como para o verdadeiro sujeito que empurrou a Ucrânia para atacar a Rússia e está armando-a em toda extensão possível, o próprio Evgeny Prigozhin é a principal prioridade, ao mesmo tempo um alvo específico e simbólico. Que o inimigo conhece o valor dos símbolos, não há dúvida. Não se deve surpreender que seja o Grupo Wagner que incite tanto ódio raivoso do inimigo e que o Ocidente tenha lançado todas as suas forças para destruir esta formação e o próprio Evgeny Prigozhin.
Dentro da Rússia, o povo aceita Prigozhin incondicionalmente. Sem dúvida, o primeiro lugar nesta guerra pertence a ele. Tudo o que ele diz ou faz ressoa bem aqui no coração do povo, na sociedade, nas amplas massas russas e eurasianas. Este é um dos muitos paradoxos da nossa história: um judeu étnico, um oligarca, uma pessoa com um passado bastante difícil, transformou-se diante dos nossos olhos no arquétipo do herói puramente russo, um símbolo de justiça e honra para todas as pessoas. Isso diz muito sobre o próprio Prigozhin e também sobre nosso povo. Acreditamos em atos, olhos e palavras quando eles vêm das profundezas. Essa profundidade em Evgeny Prigozhin não pode ser negligenciada.
As elites russas são outra questão. Precisamente porque Prigozhin fez um pacto de sangue – com seu próprio sangue e o dos heróis do Wagner – com o povo russo, com a maioria russa, ele é mais odiado por aquela parte da elite que não aceitou a guerra como seu destino, não percebeu os verdadeiros e fundamentais motivos da guerra, e até hoje não viu o perigo mortal que paira sobre o país. Parece à elite, que Prigozhin está simplesmente lutando para chegar ao poder e está preparando uma “redistribuição negra” com o apoio do povo. Para esta parte da elite russa, a própria palavra “justiça” é insuportável e arde como as chamas do inferno. Afinal, o próprio Prigozhin é da elite, mas encontrou coragem para renunciar à classe dos ricos, dos exploradores, dos cínicos e dos cosmopolitas que desprezam todos os menos bem-sucedidos e passou para o lado do povo em guerra, salvando o país.
Em tal situação, os analistas que têm sido como servos dessas elites estão se perguntando: como Prigozhin pode se comportar com tal grau de determinação, audácia e independência? Ele é um experimento de forças muito mais influentes – na verdade, simplesmente as mais altas forças – na política russa que estão usando seu exemplo para testar a prontidão da sociedade para regras mais rígidas e uma política patriótica mais consistente e voltada para as pessoas? Em outras palavras, Evgeny Prigozhin e o Grupo Wagner são os precursores de uma Oprichnina de pleno direito? Afinal, na era de Ivan, o Terrível, o exército Oprichnina foi formado em batalhas e, como no caso de Wagner, dos mais ousados, corajosos, fortes, confiáveis, ativos, independentemente de seu pedigree, título, status, grau ou posição na sociedade.
Ninguém conseguiu se safar do que Prigozhin está se safando dentro do sistema político que a Rússia conhece.”
Isso significa, como concluem os analistas, que ele logo será punido por sua insolência, ou que esse sistema político familiar não existe mais, e que diante de nossos olhos algum outro sistema novo e desconhecido está se formando, um sistema no qual, valores mudarão significativamente para a justiça, honestidade, coragem e verdadeira irmandade, tão odiados pelas elites.
Apesar de todo o seu desejo, observadores externos não podem determinar com segurança que tipo de relacionamento Evgeny Prigozhin tem pessoalmente com o Comandante-em-Chefe Supremo. Ele coordena sua linha dura com a alta liderança do país ou não? Há quem esteja convencido de que a Oprichnina de Prigozhin é sancionada de cima, mas também há quem acredite que se trata de uma performance amadora e autoproclamada, embora tenha surpreendentemente atendido às expectativas da maioria. Para o governo russo como um todo, a incerteza é seu habitat natural. Ninguém consegue entender completamente onde e quando estamos lidando com a vontade pessoal do Presidente, e onde e quando, com a iniciativa de seus associados tentando apreender antecipadamente e antecipar a “intenção do comandante” (um termo clássico da teoria da rede centrada da guerra).
Trata-se de uma abordagem bastante pragmática: neste caso, o Presidente acaba por estar acima de qualquer embate no seio da elite, havendo total liberdade para transformar o sistema (antes de tudo numa veia patriótica). Ou, se quiser, pode-se presumir que todas as iniciativas patrióticas, mesmo as mais vanguardistas (como o Grupo Wagner), estão sendo realizadas com seu consentimento tácito. Mas ninguém sabe ao certo – há apenas suposições. Prigozhin está cultivando essa incerteza ao máximo e com o máximo efeito.
Enquanto isso, o amor e a confiança em Prigozhin e o Grupo Wagner estão crescendo e, paralelamente, a ansiedade das elites. A sociedade está começando a ver em Prigozhin algo mais do que apenas um comandante de campo bem-sucedido e audacioso, um “senhor da guerra”. A configuração que prevalecia na elite antes da Operação Militar Especial permitia que um certo estrato oligárquico (sob a condição de lealdade pessoal à autoridade suprema) permanecesse parte do sistema mundial liberal globalista. O povo resmungou, lamentou e reclamou disso, mas enquanto a soberania da Rússia fosse fortalecida e enquanto parecesse que nada ameaçava o país, isso poderia ser tolerado de alguma forma. Depois que a OME começou, essa contradição foi totalmente exposta. A Rússia ficou frente a frente em uma batalha mortal com o Ocidente, que se lançou sobre nosso país com todas as suas forças, mas a elite russa continuou por inércia a seguir servilmente a terra do sol poente, para copiar seus padrões e métodos, guardar suas economias no exterior e sonhar com Courchevel e as Bahamas. Parte da elite fugiu completamente e parte se escondeu para esperar que tudo isso acabasse. E aqui apareceu o “fator Prigozhin”, agora na forma de uma figura política que se tornou o porta-voz da raiva popular contra as elites oligárquicas remanescentes que se recusaram obstinadamente a aceitar as novas realidades da guerra e a agir como o próprio Evgeny Prigozhin fez, ou seja, ir para a frente ou, no mínimo, envolver-se inteiramente e sem reservas na causa da Vitória. Se o Ocidente é nosso inimigo, então um apoiador do Ocidente, um “ocidental” (zapadnik/За́падник), é um traidor e um agente direto do inimigo. Se você não está lutando contra o Ocidente, isso significa que você está do lado dele. Esta é a lógica simples expressa por Prigozhin. Em sua batalha decisiva com o inimigo externo, as massas populares viram o segundo ato – futuro – que é a transposição de métodos semelhantes para lidar com o inimigo interno. Isso é “justiça” em seu entendimento popular, embora vulgar.
É óbvio que a tal Oprichnina não afetaria de forma alguma o próprio povo, porque apenas os inimigos de classe, e hoje os inimigos políticos do povo comum, aqueles que acabaram do lado contra o qual o povo está lutando de qualquer maneira, seriam as vítimas da “justiça wagneriana”. Cada vez mais estratos da sociedade estão chegando à conclusão (embora talvez muito simplista e linear) de que são precisamente os “inimigos internos”, os mesmos oligarcas e ocidentais sabotando ativamente a vontade de vitória do Comandante Supremo, que são responsáveis pelos deslizes e algumas falhas nas frentes. E é aqui que entra o fator “justiça”. Estamos prontos para lutar como Wagner, para morrer como Wagner, mas de forma alguma para retornar à Rússia de antes de 24 de fevereiro de 2022, às condições anteriores. Exigimos purificação, esclarecimento e inspiração espiritual da sociedade e de toda a classe dominante. Estamos lutando não apenas contra o inimigo, mas também por justiça.
O início de mudanças fundamentais na sociedade russa está diante de nós, embora com um grande atraso temporal. Evgeny Prigozhin personifica uma dessas direções. Esta é, antes de mais nada, uma guerra na qual o Grupo Wagner ilustra de forma mais vívida o que realmente é a meritocracia, isto é, o poder dos mais distintos, dos mais corajosos, dos mais merecedores. As elites de guerra são as que melhor cumprem as tarefas que lhes são impostas, e não há outros critérios. Na verdade, nossas forças armadas – pelo menos alguns dos componentes de assalto mais importantes – claramente precisam ser reorganizadas ao som do Wagner. Com um critério de avaliação: eficácia. Nas condições de guerra, o antigo critério de lealdade combinado com habilidades cortesãs não é mais suficiente. A lealdade está implícita na guerra, caso contrário, a execução é imediata. Mas agora algo mais é necessário: a capacidade de lidar com tarefas. A qualquer custo. Mesmo à custa da nossa própria vida e da dos outros. Isso por si só traz o melhor. E o pior. Tudo o que resta é colocar o melhor sobre o pior, e toda a causa irá para a Vitória.
Isso não se aplica apenas à guerra. Na política, na economia, na governança, na administração e mesmo na educação e na cultura, tendências semelhantes começam gradualmente a fazer-se sentir. Pessoas de um tipo especial são capazes de agir e alcançar resultados significativos em estados de emergência.
Lev Gumilev chamou esses tipos de ‘apaixonados’. Em prosa mais comum, eles são ‘gerentes de crise’.”
Podemos falar de “princípios do Wagner” em todos os domínios: aqueles que lidam com mais eficácia com as tarefas mais difíceis e inexequíveis que lhes são apresentadas devem se destacar. Aqueles que não conseguem devem recuar. Na terminologia política de Vilfredo Pareto, isso se chama “circulação das elites”. Na Rússia, isso está acontecendo de forma extremamente lenta e esporádica e, na maioria das vezes, não está acontecendo. A guerra exige a “circulação das elites” na ordem do ultimato. Este é um verdadeiro horror para as velhas elites que perderam sua capacidade e foram cortadas de sua matriz no Ocidente.
Evgeny Prigozhin apontou o vetor mais importante para a direção em que a Rússia terá que se mover sob quaisquer condições e circunstâncias. É por isso que o Ocidente sonha em destruí-lo e conta com as velhas elites russas, que não estão mais à altura dos desafios do momento, para ajudá-los nisso. As apostas estão aumentando constantemente. A vitória está em jogo. O caminho para a Vitória passa apenas pela justiça.