As Cinco Lições de Carl Schmitt para a Rússia
Abas primárias
O famoso jurista alemão Carl Schmitt é considerado um clássico do direito moderno. Alguns o chamam de “Maquiavel moderno” por sua falta de moralismo sentimental e de retórica humanista em sua análise da realidade política. Carl Schmitt acreditava que, ao determinar questões legais, é importante primeiramente dar um contorno claro e realista dos processos políticos e sociais e evitar o utopismo, os anseios e imperativos e dogmas apriorísticos. Hoje, as heranças jurídica e acadêmica de Carl Schmitt compõem um elemento necessário da educação jurídica em universidades ocidentais. Para a Rússia também, a criatividade de Schmitt é de interesse especial e de importância particular, já que ele tomou interesse nas situações críticas da vida política moderna. Indubitavelmente, suas análises do direito e do contexto político da legalidade podem nos ajudar a compreender mais claramente e profundamente o que exatamente está acontecendo em nossa sociedade e na Rússia.
Lição 1: Política acima de tudo
O princípio central da filosofia jurídica de Carl Schmitt era a ideia da primazia incondicional dos princípios políticos sobre critérios de existência social. É a política que organizava e predeterminava a estratégia de fatores econômicos internos e sua pressão crescente no mundo moderno. Schmitt explica isso da seguinte maneira: “O fato de que contradições econômicas se tornaram agora contradições políticas...demonstra apenas que, como toda outra atividade humana, a economia atravessa um caminho que inevitavelmente leva à expressão política". [1] O significado de tal alegação empregada por Schmitt, compreendida como um argumento histórico e sociológico sólido, na prática consiste no que pode ser definido como a teoria do “idealismo histórico coletivo”. Nesta teoria, o sujeito não são as leis individuais ou econômicas desenvolvendo substância, mas um povo concreto, historicamente e socialmente distinto que preserva, com sua vontade dinâmica – imbuída de sua própria lei – sua existência socioeconômica, unidade qualitativa, e a continuidade orgânica e espiritual de suas tradições de diferentes formas e em diferentes fases. Na compreensão de Schmitt, a esfera política representa a corporificação da vontade do povo expressada em diferentes formas relacionadas a níveis jurídico, econômico e sociopolítico.
Tal definição da política está nas antípodas dos modelos mecanicistas e universalistas da estrutura social que predominaram na jurisprudência e na filosofia jurídica do Ocidente desde o Iluminismo. A esfera política de Schmitt está diretamente associada a dois fatores que as doutrinas mecanicistas estão inclinadas a ignorar: as especificidades históricas de um povo imbuído com uma qualidade especial da vontade, e a particularidade histórica de uma dada sociedade, Estado, tradição, e passado que, na opinião de Schmitt, encontra concentração em sua manifestação política. Assim, a afirmação de Schmitt da primazia da política introduziu características qualitativas, orgânicas na filosofia jurídica e na ciência política que obviamente não estão incluídas nos esquemas unidimensionais dos “progressistas’, seja de persuasão liberal-capitalista ou socialista marxista.
A teoria de Schmitt, assim, considerava a política como sendo um fenômeno “orgânico” enraizado no “solo”.
A Rússia e o povo russo precisam de tal entendimento da política para poder governar suficientemente seu próprio destino e evitar que mais uma vez, como há sete décadas atrás, se torne refém de uma ideologia reducionista e antinacional que ignora a vontade do povo, seu passado, sua unidade qualitativa, e o significado espiritual de seu caminho histórico.
Lição 2: Que sempre haja inimigos; que sempre haja amigos
Em seu livro “O Conceito do Político”, Carl Schmitt expressa uma verdade extraordinariamente importante: “Um povo existe politicamente apenas se ele formar uma comunidade política independente e se contrastar a outras comunidades políticas em prol da preservação de sua própria compreensão de sua comunidade específica”. Apesar dessa perspectiva discordar completamente da demagogia humanista característica das teorias marxista e liberal-democrática, toda a história mundial, inclusive a história real (não a oficial) dos Estados marxistas e liberal-democráticos, mostra que tal fato é factualmente verdadeiro na prática, ainda que a consciência pós-iluminista utópica seja incapaz de reconhece-lo. Na realidade, a divisão política entre os “nossos” e os “não nossos” existe em todos os regimes políticos e em todas as nações. Sem esta distinção, nem um único Estado, povo ou nação seria capaz de preservar seu próprio rosto, seguir seu próprio caminho, e ter sua própria história.
Analisando sobriamente a acusação demagógica de anti-humanismo, a “desumanidade” de tal oposição, e a divisão em “nossos” e “não nossos”, Carl Schmitt nota: “Se começa-se a agir em nome da humanidade, em nome de um humanismo abstrato, na prática isso significa que este ator nega a todos os possíveis oponentes a reivindicação de possuir qualquer tipo de qualidade humana, declarando-se assim para além da humanidade e do direito, e portanto potencialmente ameaça uma guerra que seria travada até os limites mais terríveis e desumanos”. Notavelmente, estas linhas foram escritas em 1934, muito antes da invasão americana terrorista do Panamá ou do bombardeio do Iraque. Ademais, o gulag e suas vítimas ainda não eram conhecidos no Ocidente. Nessa perspectiva, não é o reconhecimento realista das especificidades qualitativas da existência política de um povo, que sempre pressupõe a divisão em “nossos” e “não nossos”, que leva às consequências mais aterrorizantes, mas o buscar pela universalização total e entulhar nações e Estados nas células das ideias utópicas de uma “humanidade unida e uniforme” desprovida de quaisquer diferenças orgânicas ou históricas.
Partindo desses pré-requisitos, Carl Schmitt desenvolveu a teoria da “guerra total” e da “guerra restrita”, também chamada “guerra formal”, onde a guerra total é a consequência da ideologia universalista e utopista que nega as diferenças nacionais, estatais, históricas e culturais naturais entre os povos. Tal guerra efetivamente ameaça destruir a humanidade. Como Carl Schmitt acreditava, o humanismo extremista é o caminho direto para tal guerra que implica o envolvimento não só de forças armadas, mas também de populações civis em um conflito. Este, no final das contas, é o mal mais terrível. “Guerras formais”, pelo outro lado, são inevitáveis por causa das diferenças entre povos e suas culturas indestrutíveis. “Guerras formais” envolvem a participação de soldados profissionais, e podem ser reguladas pelas regras jurídicas definidas da Europa que outrora portavam o nome de Jus Publicum Europeum (Direito Comum Europeu). Tais guerras, assim sendo, representam um mal menor, o reconhecimento teórico de sua inevitabilidade podendo proteger os povos adiantadamente de um conflito “totalizado” e da “guerra total”. Neste sentido, seria adequado citar o famoso paradoxo proposto por Shigalev em “Os Possuídos” de Dostoievski, que diz, “Partindo da liberdade absoluta, eu chego à escravidão absoluta”. Para fraseando esta verdade e aplicando-a às ideias de Carl Schmitt, pode-se dizer que os apoiadores do humanismo radical “partindo da paz total, chegam à guerra total”. Com toda devida consideração, nós temos a oportunidade de ver as observações de Shigalev em toda a história soviética. Se as precauções de Carl Schmitt não forem levadas em consideração, será significativamente mais difícil perceber sua verdade, já que não haverá mais ninguém para testemunhar que ele estava certo – não haverá mais nada da humanidade.
Agora o último ponto importante na distinção entre “nosso” e “não nosso”, aquela de “inimigos” e “amigos”. Schmitt acreditava que a centralidade desse par para o ser político da nação era valiosa já que dentro dessa escolha é decidido um problema existencial profunda. Julien Freund, um discípulo de Schmitt, formulou esta tese da seguinte maneira: “A dualidade inimigo-amigo dá à política uma dimensão existencial já que a possibilidade teoricamente implicada de guerra levanta o problema e a escolha entre vida e morte neste enquadramento” [2].
O jurista e político, julgando em termos de “inimigo” e “amigo” com uma consciência clara do significado dessa escolha, opera assim com as mesmas categorias existenciais que dão às decisões, ações e afirmações as qualidades de realidade, responsabilidade e seriedade que todas as abstrações humanistas utópicas carecem ao transformar o drama da vida e da morte em uma guerra quimérica unidimensional. Uma ilustração terrível disso foi a cobertura dos conflitos iraquianos pela mídia ocidental. Americanos seguiam as mortes de mulheres, crianças e idosos iraquianos na televisão como se estivessem assistindo jogos de computador de Guerra nas Estrelas. As ideias da Nova Ordem Mundial, cujas bases foram assentadas durante essa guerra, são manifestações supremas de quão terríveis e dramáticos os eventos são quando privados de qualquer conteúdo existencial.
O par “amigo-inimigo” é uma necessidade política tanto externa como interna para a existência de uma sociedade politicamente completa, e deveria ser friamente aceita e consciente. De outra maneira, todo mundo se torna um “inimigo” e ninguém é um “amigo”. Este é o imperativo político da história.
Lição 3: A Política das “Circunstâncias Excepcionais” e a Decisão
Um dos aspectos mais brilhantes das ideias de Carl Schmitt era o princípio das “circunstâncias excepcionais” (em alemão Ernstfall, literalmente “caso sério”) elevado ao patamar de uma categoria político-jurídica. Segundo Carl Schmitt, normas jurídicas descrevem apenas a realidade sociopolítica normal fluindo uniformemente e continuamente sem interrupções. Apenas nessas situações puramente normais o conceito de “lei” como entendido por juristas se aplica plenamente. Existem, é claro, regulações de “situações extraordinárias”, mas estas regulações são geralmente determinadas com base em critérios derivados de uma situação política normal. A jurisprudência clássica, na opinião de Schmitt, tende a absolutizar os critérios de uma situação normal ao considerar a história da sociedade como processo uniforme legalmente constituído. A expressão mais completa dessa perspectiva é a “teoria pura do direito” de Kelsen. Carl Schmitt, porém, vê esta absolutização de uma “abordagem jurídica” e do “rule of law” igualmente como mecanismo utópico e universalismo ingênuo produzido pelo Iluminismo com seus mitos racionalistas. Por trás da absolutização da lei se oculta uma tentativa de “fechar a história” e privá-la de seu padrão criativo, apaixonado, de seu conteúdo político, e povos históricos. Com base nesta análise, Carl Schmitt propõe uma particular teoria das “circunstâncias excepcionais”, ou Ernstfall.
Ernstfall é o ponto no qual uma decisão política é tomada em uma situação que não mais pode ser regulada por normas jurídicas convencionais. A tomada de decisão em circunstâncias excepcionais envolve a convergência de um número de fatores orgânicos diversos ligados tanto à tradição, ao passado histórico, às constantes culturais, bem como expressões espontâneas, superações heroicas, impulsos apaixonados, e a súbita manifestação de profundas energias existenciais. A Decisão Autêntica (o próprio termo “decisão” era um conceito fundamental da doutrina jurídica de Schmitt) é construída precisamente em tal circunstância onde normas jurídicas e sociais são “rompidas” e aquelas que descrevem o curso natural dos processos políticos e que começam a atuar no caso de uma “situação emergencial” ou “catástrofe sociopolítica” não são mais aplicáveis. “Circunstâncias excepcionais” não significam apenas catástrofe, mas a situação de um povo e de seu organismo político diante de um problema, apelando à essência histórica de um povo, seu núcleo, e sua natureza secreta que torna este povo o que ele é. Portanto, a Decisão tomada politicamente em tal situação é uma expressão espontânea da vontade profunda do povo respondendo a um desafio global, existencial ou histórico (aqui pode-se comparar as opiniões de Schmitt àquelas se Spengler, Toynbee e outros conservadores revolucionários com os quais Carl Schmitt teve fortes laços pessoais).
Na escola jurídica francesa, os seguidores de Carl Schmitt desenvolveram o termo especial “décisionisme” do francês “décision” (Entscheidung, em alemão). O decisionismo coloca a ênfase principal nas “circunstâncias excepcionais” já que é nesta instância que a nação, o povo, atualiza seu passado e determina seu futuro em uma concentração dramática do momento presente em que três características qualitativas do tempo se fundem, i.e., o poder da fonte a partir da qual o povo emerge na história, a vontade do povo de enfrentar o futuro e afirmar o aqui e agora em que o “Eu” atemporal é revelado e o povo assume responsabilidade em suas próprias mãos na máxima medida, e a autoidentidade.
Desenvolvendo sua teoria de Ernstfall e Entscheidung, Carl Schmitt também demonstrou que a afirmação de todas as normas jurídicas e sociais ocorre precisamente durante tais períodos de “circunstâncias excepcionais” e está primordialmente baseada tanto na decisão espontânea como na predeterminada. O momento intermitente da expressão singular da vontade se apoia depois na base das normas constantes que existem até a emergência de novas “circunstâncias excepcionais”. Isso, na verdade, ilustra perfeitamente a contradição inerente às ideias daqueles apoiadores radicais do “Estado de Direito”: eles conscientemente ou inconscientemente ignoram o fato de que o próprio apelo à necessidade de estabelecer o “Estado de Direito” é uma decisão baseada em nada além da vontade política de um determinado grupo. Em certo sentido, este imperativo é proposto arbitrariamente e não como algum tipo de necessidade fatal e inevitável. Portanto, a aceitação ou recusa do “Estado de Direito” e, em geral, a aceitação ou recusa desse ou daquele modelo jurídico deve concordar com a vontade do povo ou Estado particular a quem a proposição ou expressão de vontade é dirigida. Apoiadores do “Estado de Direito” implicitamente buscam criar ou utilizar “circunstâncias excepcionais” para a implementação de seu conceito, mas a insidiosidade de tal abordagem e a hipocrisia e inconsistência no método podem naturalmente despertar uma reação popular, cujo resultado bem poderia aparecer como outra decisão alternativa. Ademais, é muito mais provável que esta decisão levaria ao estabelecimento de uma realidade jurídica diferente do que a buscada por universalistas.
O conceito da Decisão no sentido suprajurídico, bem como a própria natureza da Decisão, se harmoniza com a teoria do “poder direto” e “poder indireto” (potestas directa e potestas indirecta). No contexto específico de Schmitt, a Decisão é tomada não apenas em instâncias de “poder direto” (o poder dos reis, imperadores, presidentes, etc.) mas também sob as condições do “poder indireto”, cujos exemplos podem ser organizações religiosas, culturais ou ideológicas que influenciam a história de um povo e Estado não tão claramente quanto as decisões dos governantes, mas que, não obstante, são muito mais profundas e formidáveis em operação. Schmitt crê que o “poder indireto”, portanto, nem sempre é negativo, mas que, por outro lado, ele apenas implicitamente alude ao fato de que uma decisão contrária à vontade do povo é usualmente adotada e implementada por tais meios de “poder indireto”. Em seu livro Teologia Política e seu acréscimo posterior Teologia Política II, ele examina a lógica do funcionamento desses dois tipos de autoridade em Estados e nações.
A teoria das “circunstâncias excepcionais” e o tema da Decisão (Entscheidung) ligado a ela são de importância fundamental para nós hoje, já que é precisamente em tal ponto na história de nosso povo e Estado que nos encontramos agora, em que “circunstâncias excepcionais” se tornaram o estado natural da nação e não só o futuro político de nosso povo, mas também a compreensão e confirmação essencial de nosso passado, dependem agora da Decisão. Se a vontade do povo afirma a si mesma e a escolha nacional do povo neste momento dramático pode definir claramente os “nossos” e os “outros”, identificar amigos e inimigos, e arrancar a autoafirmação política da história, então a Decisão do Estado russo e do povo russo será sua própria decisão histórica existencial que colocará um selo de lealdade sobre milênios de “construção do povo” e “construção do império”. Isso significa que nosso futuro será russo. Se outros tomarem a decisão, i.e., os apoiadores da “abordagem humana comum”, do “universalismo”, e do “igualitarismo”, que desde a morte do marxismo representam os únicos herdeiros diretos da ideologia utópica e mecanicista do Iluminismo, então não só o futuro será “não-russo”, ele será “humano”, e assim será um “não-futuro” (a partir da perspectiva do ser do povo, do Estado e da nação). Nosso passado perderá seu sentido e o drama da grande histórica russa será transformado em uma farsa tola no caminho rumo ao mundialismo e à nivelação cultural completa na “humanidade universal”, i.e., o “inferno da realidade jurídica absoluta”.
Lição 4: Os Imperativos de um Grande Espaço
Carl Schmitt também tocou o aspecto geopolítico das questões sociais. A mais importante de suas ideias nessa esfera é a noção de “Grande Espaço” (Grossraum) que depois viria a ser considerada por inúmeros economistas, juristas, geopolíticos e estrategistas europeus. O significado conceitual de “Grande Espaço” na perspectiva analítica de Carl Schmitt jaz na delineação de regiões geográficas dentro das quais as variações da automanifestação política de povos e Estados específicos incluídos nesta região podem ser conjuntados para alcançar a generalização harmoniosa e consistente expressa em uma “Grande União Geopolítica”. O ponto de partida de Schmitt foi a questão da Doutrina Monroe Americana abarcando a integração econômica e estratégica dos poderes americanos dentro das fronteiras naturais do Novo Mundo. Dado que a Eurásia representa um conglomerado muito mais diverso de etnias, Estados e culturas, Schmitt propôs que, assim, valia a pena falar não tanto sobre integração continental total quando do estabelecimento de várias grandes entidades geopolíticas, cada uma das quais devendo ser governadas por um super-Estado flexível. Isto, em princípio, é análogo ao Jus Publicum Europaeum ou à Santa Aliança proposta à Europa pelo imperador russo Alexandre I.
Na opinião de Carl Schmitt, um “Grande Espaço” organizado em uma estrutura política flexível do tipo imperial federal compensaria por várias vontades estatais, étnicas e nacionais e serviria como um tipo de árbitro ou regulador imparcial de possíveis conflitos locais, “guerras formais”. Schmitt enfatizou que os “Grandes Espaços”, para que sejam formações orgânicas e naturais, necessariamente teria que representar territórios terrestres, i.e., entidades telurocráticas, massas continentais. Em seu famoso livro “O Nomos da Terra”, ele traçou a história das macro-entidades políticas, o caminho de sua integração, e a lógica de seu estabelecimento gradual como impérios. Carl Schmitt notou que paralelamente à existência de constantes espirituais no destino de um povo, i.e., constantes incorporando a essência espiritual de um povo, existem também constantes geopolíticas de “Grandes Espaços” que gravitam na direção de uma nova restauração com intervalos de vários séculos ou mesmo milênios. Neste sentido, macro-entidades geopolíticas são estáveis quando seu princípio de integração não é rígido e abstratamente recriado, mas flexível, orgânico e harmônico com a Decisão dos povos, sua vontade e sua energia apaixonada capaz de envolve-los em um bloco telurocrático unificado com seus vizinhos estatais, culturais ou geopolíticos.
A doutrina dos “Grandes Espaços” (Grossraum) foi estabelecida por Carl Schmitt não só como uma análise das tendências históricas na história do continente, mas também como projeto para unificação futura, o que Schmitt considerou não só possível, mas desejável e mesmo necessário em certo sentido. Julien Freund resumiu as ideias de Schmitt sobre a Grossraum futura nos seguintes termos: “A organização desse novo espaço não demandará qualquer competência científica, ou preparação técnica ou cultural na medida em que ela emerge como resultado da vontade política, cujo ethos transformará a aparência do direito internacional. Uma vez que este ‘Grande Espaço’ seja unificado, então a coisa mais importante de todas será a força de sua ‘radiação’” [3].
Assim, a ideia de Carl Schmitt do “Grande Espaço” também possui uma dimensão espontânea, existencial e volitiva como o sujeito fundamental da história em seu entendimento, i.e., o povo enquanto unidade política. Seguindo os geopolíticos Mackinder e Kjellen, Schmitt justapôs impérios talassocráticos (Fenícia, Inglaterra, EUA, etc.) aos impérios telurocráticos (Império Romano, a Áustria-Hungria habsburga, o Império Russo, etc.). Em sua perspectiva, a organização orgânica e harmônica de um espaço só é possível no caso de impérios telurocráticos e o direito continental só pode ser aplicado a eles. A talassocracia, se movendo para além das fronteiras de sua ilha e começando a expansão naval, entra em conflito com as telurocracias e, segundo a lógica geopolítica, começa a solapar diplomaticamente, economicamente e militarmente as bases dos “Grandes Espaços” continentais. Assim, na perspectiva dos “Grandes Espaços” continentais, Schmitt novamente retorna aos conceitos dos pares “amigo-inimigo” e “nosso-não-nosso”, só que dessa vez em um macronível planetário. A vontade dos impérios continentais, o “Grande Espaço”, se revela no confronto entre macro-interesses continentais e os macro-interesses do além-mar. O “Mar”, assim, desafia a “Terra’, e para responder a este desafio, a “Terra” deve usualmente retornar à sua profunda autoconsciência continental.
Como um aparte, ilustraremos a teoria do Grossraum com dois exemplos. No final do século 18 - início do século 19, o território dos EUA estava dividido entre vários países do Velho Mundo. O extremo oeste, Louisiana, pertencia aos espanhóis e depois aos franceses; o sul pertencia ao México; o norte à Inglaterra e assim por diante. Nesta situação, a Europa representava um poder telurocrático para os EUA, impedindo a unificação geopolítica e estratégica do Novo Mundo nos níveis militar, econômico e diplomático. Depois que os EUA obtiveram a independência, gradualmente começaram a impor mais e mais agressivamente sua vontade geopolítica sobre o Velho Mundo, o que logicamente levou ao enfraquecimento da unidade continental do "Grande Espaço" europeu. Portanto, na história geopolítica dos "Grandes Espaços", não há potências telurocráticas absolutas ou talassocráticas absolutas. Os papéis podem mudar, mas a lógica continental permanece constante.
Resumindo a teoria dos “Grandes Espaços” de Carl Schmitt com relação à situação na Rússia atual, podemos dizer que a separação e desintegração do “Grande Espaço” outrora chamado URSS contradiz a lógica continental da Eurásia, uma vez que os povos que habitam nossas terras perderam a oportunidade de apelar para o árbitro da superpotência [soviética] capaz de regular ou conter conflitos potenciais e reais. Mas, por outro lado, a rejeição da demagogia marxista excessivamente rígida e inflexível elevada ao nível de ideologia estatal pode conduzir e conduzirá, se permitido, a uma restauração espontânea e apaixonada do bloco eurasiano oriental, uma vez que tal reconstrução está de acordo com todas as etnias nativas do espaço imperial russo. Além disso, é muito provável que a restauração de um Império Federal, um "Grande Espaço" que abarque a parte oriental do continente, aproveitaria por meio de sua "irradiação de poder" os territórios adicionais que estão perdendo rapidamente suas identidades etno-estatais na situação geopolítica crítica e antinatural que prevalece desde o colapso da URSS. Por outro lado, o pensamento continental do genial jurista alemão nos permite distinguir entre “nosso” e “não nosso” no nível continental.
A consciência do confronto natural e até certo ponto inevitável entre as forças telurocráticas e talassocráticas oferece aos arautos e criadores de um novo Grande Espaço uma clara compreensão do “inimigo” encarando a Europa, a Rússia e a Ásia, que são os Estados Unidos da América, junto com sua ilha talassocrática aliada, a Inglaterra. Mais uma vez, retornando do nível macro do planeta ao nível da estrutura social do Estado russo, segue-se que a questão deve ser colocada: um lobby talassocrático oculto não está por trás do desejo de influenciar a Decisão russa de problemas em uma veia “universalista” que pode exercer sua influência através tanto do poder “direto” como do “indireto”?
Lição 5: “Paz Militante” e a Teleologia do Partisan
No final de sua vida (ele morreu em 7 de abril de 1985), Carl Schmitt dedicou atenção especial ao desfecho negativo da história que, na verdade, é bem possível se as doutrinas irrealistas dos humanistas radicais, universalistas, utopistas e apoiadores dos “valores humanos comuns”, centrados no gigantesco potencial simbólico da potência talassocrática dos EUA, alcançam predominância global e se tornam a base ideológica de uma nova ditadura mundial - a ditadura de uma “utopia mecanicista”. Schmitt acreditava que o curso moderno da história está inevitavelmente se movendo em direção ao que ele chamou de "guerra total".
Segundo Schmitt, a lógica da “totalitarização” das relações planetárias nos níveis estratégico, militar e diplomático baseia-se nos seguintes pontos fundamentais. Começando com um certo ponto na história, ou mais precisamente a época da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos da América, um recuo máximo das constantes históricas, jurídicas, nacionais e geopolíticas que anteriormente garantiam a harmonia orgânica no planeta e serviam o "Nomos da Terra" foi iniciado.
Em um nível jurídico, um conceito quantitativo, artificial e atomizante de “direitos individuais” (que mais tarde se tornaria a famosa teoria dos “direitos humanos”) começou a se desenvolver, substituindo o conceito orgânico de “direitos do povo”, “direitos do Estado”, etc. Na opinião de Schmitt, o emprego do indivíduo e do fator individual isoladamente da nação, da tradição, da cultura, da profissão, da família, etc. como uma categoria jurídica autônoma significou o início da “decadência do direito” e sua transformação em uma quimera utópica e igualitária contrária às leis orgânicas da história dos povos e Estados, regimes, territórios e uniões.
No nível nacional, os princípios imperiais federais orgânicos passaram a ser substituídos por duas concepções opostas, mas igualmente artificiais: a ideia jacobina do “Estado-nação” e a teoria comunista do desaparecimento completo do Estado e do início do internacionalismo total. Os impérios que preservaram resquícios de estruturas orgânicas tradicionais, como a Áustria-Hungria, o Império Otomano, o Império Russo, etc., rapidamente começaram a ser destruídos sob a influência de fatores externos e internos. Finalmente, no nível geopolítico, o fator talassocrático intensificou-se a ponto de ocorrer uma profunda desestabilização das relações jurídicas na esfera dos “Grandes Espaços”. Notemos que Schmitt considerava o “Mar” como um espaço a ser muito menos passível de delineação e arranjo jurídicos do que a “Terra”.
A disseminação global da desarmonia jurídica e geopolítica foi acompanhada pelo desvio progressivo das concepções políticas e ideológicas dominantes da realidade, tornando-as cada vez mais quiméricas, ilusórias e, em última instância, hipócritas. Quanto mais se falava do “mundo universal”, piores se tornavam as guerras e os conflitos. Quanto mais “humanitários” os slogans se tornavam, mais desumana se tornava realidade social. É esse processo que Carl Schmitt chamou de início da “paz militante”, ou seja, um estado em que não há nem guerra nem paz no sentido tradicional. A iminente “totalidade” de hoje, da qual Carl Schmitt alertou, passou a ser chamada de mundialismo. A "paz militante" recebeu sua expressão completa na teoria da Nova Ordem Mundial Americana, que em seu movimento em direção à "paz total" está claramente levando o planeta a uma nova "guerra total".
Carl Schmitt considerava o desenvolvimento do espaço cósmico como o evento geopolítico mais importante, simbolizando um grau adicional de afastamento do ordenamento legítimo do espaço, já que o cosmos é ainda menos receptivo à “organização” do que o espaço marítimo. O desenvolvimento da aviação também foi um passo em direção à “totalização” da guerra, segundo Schmitt, com a exploração espacial iniciando o processo de “totalitarização” ilegítima final.
Paralelamente a empurrar o planeta para essa monstruosidade marítima, aérea e até mesmo cósmica, Carl Schmitt, que sempre se interessou por categorias mais globais, a menor das quais era a “unidade política do povo”, passou a ser atraído por uma nova figura na história, a figura do "guerrilheiro", a cujo estudo Schmitt dedicou seu último livro, a “Teoria do Guerrilheiro”. Schmitt viu neste pequeno combatente contra forças maiores algum tipo de símbolo da última resistência da telurocracia por parte de seus últimos defensores. O guerilheiro é, sem dúvida, uma figura moderna. Ele, como outros tipos políticos modernos, está divorciado da tradição e vive além do Jus Publicum. O guerrilheiro quebra todas as regras de guerra em sua luta. Ele não é um soldado, mas um civil que usa métodos terroristas que, em uma situação que não fosse a de tempo de guerra, seriam equiparadas a ofensas criminais semelhantes ao terrorismo. No entanto, é o Guerrilheiro que, de acordo com Carl Schmitt, incorpora a “fidelidade à Terra”. O Guerrilheiro é, simplesmente, uma resposta ilegítima ao desafio mascarado e ilegítimo do “direito” moderno. A extraordinariedade da situação e o constante engrossamento da “paz militante” (ou “guerra pacifista”, que é uma e a mesma coisa) atrai o pequeno defensor do solo, da história, do povo, da nação e das ideias da fonte de sua justificativa paradoxal. A eficiência estratégica do Guerrilheiro e de seus métodos são, de acordo com Schmitt, a compensação paradoxal da “guerra total” começada ou iniciando contra um “inimigo total”.
Talvez seja essa a lição de Carl Schmitt, que tirou muito da história da Rússia, da estratégia militar russa e da doutrina política russa, incluindo análises das obras de Lênin e Stálin, que é mais compreensível para os russos. O Guerrilheiro é um personagem integral da história russa que sempre aparece quando a vontade do establishment político russo e a vontade profunda do próprio povo russo são desviados ao máximo. A turbulência e a guerra de guerrilha na história da Rússia sempre tiveram um caráter puramente político e compensatório, destinadas a corrigir o curso da nação, quando sua liderança política está cada vez mais alienada do povo. Na Rússia, os guerrilheiros venceram as guerras que o governo perdeu, derrubaram as tradições não-russas dos sistemas econômicos e corrigiram os erros geopolíticos de seus líderes. Os russos sempre possuíram um bom senso de quando a ilegitimidade ou a injustiça orgânica é inerente a essa ou aquela doutrina que surge por meio desse ou daquele personagem. Em certo sentido, a Rússia é um gigantesco Império Guerrilheiro operando fora da lei e impulsionado pela grande intuição da Terra, o Continente, aquele "Grande, Muito Grande Espaço", que é o território histórico do nosso povo.
No presente momento, conforme a diferença entre a vontade da nação e a vontade do establishment na Rússia (que representa exclusivamente o “Estado de Direito” segundo o modelo universalista) é ameaçadoramente grande e conforme o vento da talassocracia está intensificando o ordenamento da “paz militante” no país e gradualmente se tornando uma forma extrema de “guerra total”, talvez essa figura do guerrilheiro russo nos mostre o caminho para o futuro russo através da forma extrema de resistência, o salto sobre as fronteiras artificiais e normas jurídicas que não estão de acordo com os verdadeiros cânones da lei russa.
Uma assimilação mais detalhada da quinta lição de Carl Schmitt significa assumir a Práxis Sagrada de defender a Terra.
Comentários Finais
Finalmente, a sexta lição não-programada de Carl Schmitt pode ser chamada de exemplo do que o líder da Nova Direita Européia, Alain de Benoist, chama de “imaginação política” ou “criatividade ideológica”. A genialidade do jurista alemão reside em que ele não apenas sentiu as "linhas de campo" da história, mas também deu ouvidos à misteriosa voz da essência, embora ela esteja muitas vezes escondida por trás dos fenômenos vazios e insossos do complexo e dinâmico mundo moderno. Nós, russos, devemos aprender com a rigidez teutônica ao colocar nossas instituições sem fundo e supervalorizadas em fórmulas intelectuais claras, projetos ideológicos claros e teorias convincentes e atrativas.
Isto é necessário especialmente hoje porque vivemos em “circunstâncias excepcionais” no limiar de uma Decisão tão importante que nossa nação talvez nunca tenha visto igual. A verdadeira elite nacional não tem o direito de deixar seu povo sem uma ideologia que explique não apenas o que sente e pensa, mas o que não sente e não pensa, e até o que foi mantido em segredo de si e devotadamente adorado por milhares de anos. Se não armarmos ideologicamente o Estado, que sendo “não nosso” poderia arrancar temporariamente de nós, então devemos necessariamente, sem falha, armar ideologicamente o guerrilheiro russo que está despertando hoje para cumprir sua missão continental no são hoje as “anglicizantes” Riga e Vilnius, o “enegrescente” Cáucaso, a “amarelante” Ásia Central, a “polonizante” Ucrânia e Tartária de “olhos negros”.
A Rússia é um Grande Espaço cuja Grande Idéia é levada por seu povo em seu gigantesco solo continental da Eurásia. Se um gênio alemão serve ao nosso Despertar, então ao fazê-lo, os teutões ganharam um lugar privilegiado entre os “amigos da Grande Rússia” e se tornarão “nossos”, “asiáticos”, “hunos” e “citas” como nós, os nativos da Grande Floresta e das Grandes Estepes.
Notas
[1] Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, p.127
[2] Julien Freund, “Les lignes de force de la pensée politique de Carl Schmitt”, Nouvelle Ecole No. 44
[3] Ibid.