Geopolítica: teorias, conceitos, escolas e debates
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A geopolítica é um ramo separado de análise estratégica. Existem algumas ligações entre as teorias das Relações Internacionais e as teorias geopolíticas, mas a Geopolítica é um campo absolutamente original e independente de pensamento e análise estratégica. Nesta palestra, vamos falar sobre os paradigmas, conceitos, escolas e principais debates da geopolítica.
A geopolítica pode ser definida como uma disciplina que estuda as relações e interações entre Espaços (Territórios), Estados, Civilizações, Povos e Economia. Este é um contexto muito mais amplo do que o das Relações Internacionais, porque as teorias das Relações Internacionais estudam apenas as relações estado-a-estado. A geopolítica é muito mais ampla. Em primeiro lugar, centra-se nas relações entre Estado e Espaço (território) — e não só, mas também cultura-a-cultura e povo-a-povo, tudo situado no espaço. O espaço na geopolítica desempenha o mesmo papel que o tempo na história. A análise geopolítica baseia-se na centralidade do espaço.O espaço, em qualquer sentido, não apenas o material, é sincronicidade. É algo que acontece simultaneamente. É uma abordagem sincronística, não diacrônica.
Historicamente, a Geopolítica foi desenvolvida a partir da geografia política e da “antropogeografia”. É uma espécie de geografia política e humana. Ambos os termos foram introduzidos no século XIX pelo professor alemão Friedrich Ratzel (1844-1904). Geografia política significa a relação entre o estado e o território, ou espaço. O mesmo Ratzel também utilizou em suas pesquisas o termo antropogeografia, que significa geografia humana. O anthropos, ou homem, é o mais importante aqui. Nas Relações Internacionais, ninguém fala do homem ou do humano, mas apenas do Estado. Na Geopolítica não é assim. A geopolítica tenta envolver mais níveis de análise do que as Relações Internacionais. É por isso que tem havido problemas com esta disciplina, porque alguns estudiosos pensam que é muito ampla e inclui muitos níveis em um conceito, e por isso não é uma ciência precisa.
O próximo elemento da Geopolítica foi a ideia do estudioso sueco Rudolf Kjellen (1864-1922). Ele propôs a ideia de que o Estado é um ser vivo. Essa era uma atitude orgânica em relação ao Estado. Se há seres vivos que se movem, então os estados se movem, ou eles têm certas relações com a terra. Este é um conceito organicista. Kjellen e Ratzel pertenciam à mesma escola filosófica do organicismo. Eles consideravam a vida, incluindo a vida política, como algo natural, não mecânico, mas orgânico.
Então, qual é o espaço da Geopolítica? É qualitativo, não quantitativo. Não é espaço “físico” ou espaço “científico”. A qualidade do espaço é algo como “espaço vital”. O conceito de espaço vital, ou Lebensraum, foi introduzido por Ratzel. Posteriormente, o termo passou a significar um espaço que um povo em crescimento precisa ocupar para satisfazer suas necessidades. Mas esse era um uso prático e pragmático do termo. Originalmente, Lebensraum, no contexto das ideias de Ratzel, significava precisamente o espaço que vive — “espaço vivo”, numa atitude orgânica e qualitativa. Espaço é qualidade, onde as orientações importam. Isso tem muito mais do espaço aristotélico do que do espaço da física moderna. Este é o espaço da mecânica quântica, com diferentes orientações. O espaço é diferente se você for para o Norte, Sul, Leste ou Oeste — eles não são conceitos relativos. Existe uma espécie de Sul absoluto ou Norte absoluto, Oeste absoluto ou Leste absoluto. Este espaço é uma espécie de categoria carregada de características próprias. Espaço ou território é destino. Com tal atitude, o espaço ganha uma espécie de significado histórico. O espaço não é indiferente; é uma categoria orgânica muito especial. O espaço também é mais importante que o tempo. Essa observação, também, faz da Geopolítica uma disciplina pós-moderna, pois a modernidade se centra no tempo, na história e como tudo está em mudança no irreversível processo do tempo e do progresso.
A geopolítica afirma que a categoria mais importante da vida humana e das relações políticas é o espaço. Se você, seu país, sua cultura ou seu povo vive em um tipo de espaço, ele terá valores especiais, política especial e organização política especial — se, por exemplo, você mora em uma ilha ou em um espaço costeiro, você será obrigado a ter um sistema político diferente, um conjunto cultural de valores diferente e assim por diante.
O espaço, como fundamento da estratégia, também foi avaliado pelo pragmatista e almirante americano Alfred Thayer Mahan (1840-1914). O termo “Geopolítica” foi usado pela primeira vez por Rudolf Kjellen; “geografia política” e “antropogeografia” de Ratzel, e “geoestratégia” de Mahan. Estes são os pais fundadores ou precursores da Geopolítica.
Mas propriamente falando, a Geopolítica como disciplina se formou mais tarde, no início do século XX. O contexto do nascimento da Geopolítica foi a estratégia imperial britânica. O verdadeiro fundador da Geopolítica foi o britânico Sir Halford Mackinder, um imperialista e partidário inglês e promotor do reforço do império britânico. Ele pensou nos princípios básicos da estratégia imperial britânica e tentou conceituá-los, baseando-se na geografia política de Ratzel e na geoestratégia de Mahan, e outros autores — alguns britânicos, outros americanos.
O contexto é muito importante. A geopolítica como disciplina nasceu no contexto do Império Britânico no início do século XX, quando o Império Britânico ainda estava florescendo — não no final ou em meio ao declínio, mas no que poderia ter sido o auge do Império Britânico, quando os bretões governavam o mundo através dos oceanos e tinham colônias como a Índia, a China — que era quase uma colônia, não formalmente, mas sob influência da Grã-Bretanha — Japão, Irã, Oriente Médio, Turquia e quase toda a África. Enquanto as colônias alemãs eram muito pequenas, a França e a Grã-Bretanha compartilhavam a maior parte da África. O Império Britânico estava vivo e florescia. O contexto da Geopolítica foi, assim, o “Grande Jogo”.
O “Grande Jogo” era a ideia de que o inimigo mais importante do Império Britânico, pouco antes da “era da geopolítica”, era a Rússia Imperial, que exercia um controle crescente sobre a Ásia Central e ameaçava as colônias inglesas no Oriente Médio e na Índia, tentando ir para o sul, rumo ao Afeganistão, e também considerando a expansão russa no Cáucaso – todo esse crescente poder da Rússia era considerado o principal inimigo do Império Britânico. Este foi o “Grande Jogo”. Muitos aspectos da geopolítica internacional global durante o século XIX e início do século XX podem ser explicados em termos do Grande Jogo.
A estratégia imperial britânica, incluindo o Grande Jogo, foi o contexto do nascimento da Geopolítica. O Império Britânico precisava controlar as rotas comerciais no continente, mas principalmente nos oceanos e mares, pois o poder do Império Britânico era baseado no controle das rotas comerciais. Essa era quase a “lei” – que o Império Britânico controlasse as rotas comerciais em todo o mundo. Esse era o aspecto básico da estratégia britânica, o sistema de colônias, pois a Grã-Bretanha controlava e explorava muitas colônias na África, Ásia e assim por diante. A ideia, uma das principais preocupações do imperialismo britânico, era conservar o Império Britânico. A geopolítica nasceu como a reflexão teórica sobre o imperialismo anglo-saxão. Era uma abordagem puramente ocidental e imperialista. Esse era o contexto. É muito importante situar a ciência e seus métodos em seu contexto histórico concreto.
O verdadeiro fundador da Geopolítica, Sir Halford John Mackinder, foi um geógrafo político, além de fundador da London School of Economics. Ele foi um dos principais pensadores do imperialismo britânico. Ao tentar reunir todas as ameaças, princípios, perspectivas e “lógica” do imperialismo britânico, bem como tentar preparar seu futuro de forma prática, Mackinder chegou à primeira visão que foi uma espécie de resultado de abordagens anteriores à geografia política. Ele publicou em 1904 na Inglaterra um texto muito importante composto por pequenos artigos, chamado The Geographical Pivot of History. Nesses artigos, Mackinder expôs a verdadeira base e os princípios da Geopolítica. Podemos falar de geografia política antes de Mackinder, mas só podemos falar de geopolítica sensu stricto depois de Mackinder. A linha é traçada entre a preparação e a criação do método científico. Mackinder é uma figura central e essa é a visão principal até agora. Sua realidade é absoluta. Não podemos dispensar Mackinder. Não há geopolítica exceto a de Mackinder — como no Islã, não há Deus além de Allah. Mackinder criou essa ciência, esse método, com base em ideias, teorias e doutrinas anteriores, mas aqui está precisamente a essência da Geopolítica: Mackinder afirmou que há uma oposição fundamental entre dois poderes globais — e isso é a Geopolítica, precisamente.
Há o Poder Terrestre, identificado como Heartland, o “pivô geográfico” ou “eixo” da história. Toda a história gira em torno desse pivô, desse eixo, desse Heartland. A história é um processo, uma dinâmica, e aqui está o ponto de “não dinâmica”, o ponto estático, o pivô, em torno do qual a roda se move. Esse é a Potência Terrestre.
Há o Poder Marítimo, que é precisamente história. História, ou tempo, é o poder marítimo. Eternidade ou o ponto imóvel é Heartland ou Poder Terrestre. Eles representam dois tipos de civilização. O poder da terra se baseia na constância e na eternidade, pois a terra é fixa, não se move, é espaço fixo. É a própria fixidez, que é o que Mackinder entendia por Poder Terrestre. Poder Marítimo é algo que se move.
Esse dualismo serviu para Mackinder explicar o significado da história. Segundo Mackinder, a luta ou dualismo entre o poder terrestre e o poder marítimo é a chave para a compreensão da história. Podemos ver que isso é exatamente um tipo de explicação ou teorização do Grande Jogo. Mas esta é também a generalização de Mackinder, porque não é apenas uma explicação do Grande Jogo. O Grande Jogo — que viu o Império Britânico tentar controlar os mares e oceanos contra o Império Russo — foi um momento concreto, histórico e estratégico, mas Mackinder generalizou que o Grande Jogo reflete algo mais profundo, algo universal, os princípios básicos de como a história humana continua. Este é o princípio básico da Geopolítica.
Quando Mackinder tentou aplicar suas ideias à história, descobriu que não há apenas o confronto britânico e russo dos últimos séculos que pode ser explicado por esse mapa geopolítico, mas ele enxergou o Poder Marítimo na história e o identificou em Atenas, como costeira, como potência marítima; em Cartago, o adversário de Roma nas Guerras Púnicas; em Veneza como potência marítima e civilização comercial; no império colonial holandês e, finalmente, na Grã-Bretanha. Este foi um tipo de continuidade geopolítica entre diferentes formas de poder marítimo na história. Portanto, não é apenas uma explicação do Grande Jogo, mas é uma lei. Todas as potências marítimas da história se basearam no comércio, nas oligarquias, no desenvolvimento técnico e no controle dos mares, não da terra — porque a potência marítima nunca se aprofunda demais no continente. Eles controlam o continente pelo controle da costa. A costa é muito mais importante que a massa continental. Ou seja, em última análise, o controle de todo o espaço onde os humanos vivem “de fora”, dos mares e oceanos. O ponto de vista do Oceano, Mar ou Água, é o elemento principal. Este é o poder da Água, onde você não pode traçar fronteiras. Não há nada fixo na Água. O oceano, o mar e os lagos são espaços em constante mudança. Você não pode domesticar criaturas que vivem na água. Você só pode pescá-las. Você não pode se alimentar livremente na água. Você precisa de um navio — algo artificial. Essa é a diferença entre a natureza da Água e da Terra. A Terra é estável. Você se sente bem, seguro e protegido na terra, e pode domesticar animais. A Terra é uma espécie de ambiente natural, enquanto o Oceano não é natural. Você precisa de algum tipo de tecnologia para estar lá, como um navio. Há uma espécie de alienação do espaço, do ambiente, que está no centro do Poder Marítimo. Poder Marítimo já na obra de Mackinder obtém uma espécie de dimensão metafísica ou cultural. Não se trata apenas do Grande Jogo e da estratégia imperial britânica — trata-se de algo muito mais profundo. Isso foi exposto apenas em pequenas observações nesses artigos, mas era absolutamente subjacente.
O Poder Terrestre na história é exatamente o oposto. É Esparta lutando contra Atenas na Guerra do Peloponeso. É Roma contra Cartago nas Guerras Púnicas. É a Áustria, a Alemanha e a Rússia contra o imperialismo ocidental — inglês e francês. Essa análise é muito mais ampla do que situações concretas. Mackinder propôs a chave para decifrar a lógica da história, a saber, que toda a história humana é baseada nesse tipo de cosmologia ou mitologia, uma mitologia política de dois princípios opostos lutando um contra o outro e tentando vencer — às vezes Esparta vence, às vezes Atenas, às vezes Roma, às vezes Cartago, e assim por diante, às vezes Rússia, às vezes Grã-Bretanha. Há um equilíbrio, uma guerra eterna de continentes.
Já nas obras de Mackinder, Poder Marítimo significa comércio, liberalismo, democracia, progresso, inovação técnica, oligarquia, ciência, aventura, espírito empreendedor e capitalismo. Todas essas marcas ou características criaram o capitalismo. O capitalismo nasceu na Grã-Bretanha durante sua experiência colonial. O Poder Marítimo está ligado ao capitalismo liberal, à democracia, e obtém assim também uma dimensão política e ideológica já em Mackinder. É por isso que Poder Marítimo é “bom” para o capitalismo. Aqui surge a profecia auto-realizável: o poder marítimo é progresso, o poder terrestre é regressão ou estagnação. O Poder da Terra representa força, conservadorismo, hierarquia, ordem, asceticismo como moral, aristocracia, religião, ética e estabilidade. Se compararmos esses conceitos, então não é necessariamente socialismo. É algo que não é liberalismo. Pode ser um império tradicional, uma sociedade pré-moderna ou conservadora, mas também pode ser o socialismo. Tudo o que não é capitalismo e liberalismo pode ser Poder Terrestre. Isso é precisamente geopolítica.
A geopolítica moderna do século XIX é a mesma. Ainda é o bom e velho ponto de vista de Mackinder. Aqui vemos os principais termos e conceitos da geopolítica.
Rimland é um conceito muito importante, porque é a zona costeira. Na geopolítica, Rimland é justamente a parte mais interessante da estrutura do espaço, porque existe o espaço marítimo, o espaço terrestre e o Rimland, que é algo “entre” terra e mar. A costa de Rimland pode ser controlada do mar ou da terra. Quem controla o Rimland, controla tudo.
Aqui podemos ver o famoso mapa de Mackinder, que foi publicado na National Geographic em seu artigo “O pivô geográfico da história”. Aqui vemos toda a geopolítica em um mapa. É tão “clássico” e tão fundamental que hoje todos os que estudam geopolítica e aplicam a análise geopolítica à situação moderna ainda usam esse mapa, desenhado no início do século XX. Este mapa, desenhado há mais de cem anos, é tão atual que é uma espécie de mapa profético. O que vemos aqui é o Poder Marítimo no que é chamado de Crescente Externo e Insular. Este é o território controlado pelo Império Britânico e pelo mundo anglo-saxão. Existe a área pivô, a mesma que Heartland, que é a massa de terra do Poder Terrestre. Aqui reside o Poder Terrestre. E há o Crescente Interno ou Marginal, que é o Rimland ou a área costeira.
A história mundial começa quando tanto o Poder Terrestre quanto o Poder Marítimo adquiriram dimensões planetárias. Anteriormente, a luta era em escala reduzida, mas agora adquiriu uma dimensão planetária, e há apenas uma explicação para o que está acontecendo em nível planetário: o Poder Marítimo está lutando contra o Poder Terrestre, tentando controlar o Crescente Interior ou Marginal. O objeto da luta entre as duas potências geopolíticas, segundo Mackinder, é o controle dessa zona, que poderia ser controlada de duas maneiras. A primeira é pelo Poder Marítimo, o que significa que a metrópole, centro do Império Britânico, é a dona de todo esse espaço. Realmente, na verdade, no início do século XX, todo esse espaço era controlado pelo Império Britânico. Eles precisavam (e precisam) controlar a Europa, Norte da África, Oriente Médio, Irã, Índia, pelo menos a parte costeira da China, do Japão e a parte do Extremo Oriente que pertence à Rússia. A ideia era que o Crescente Interno, ou Rimland, deveria ser controlado pelo Poder Marítimo, e esse é o caminho para a dominação global pelo mundo anglo-saxão. A conceituação do Império Britânico levou Mackinder a essa conclusão, e desenhar este mapa foi o ato fundador da criação da Geopolítica.
Mas o que o Poder Terrestre deve fazer no campo da história? Mackinder reconheceu honestamente que o Poder Terrestre vai revidar. O Poder Terrestre, ou Heartland, tentará fazer exatamente o contrário: expandir seu poder para o Ocidente, conquistar a Europa Ocidental, ou toda a Europa, impor sua influência no Cáucaso, no Oriente Médio e na Turquia, tentando usar a território da Turquia em declínio, e o Heartland tentará destruir o controle do Império Britânico sobre o Afeganistão, a Ásia Central e a Índia e, chegando à China, expulsar de lá o Império Britânico, assim como no Japão. Este foi um tipo de Grande Jogo, equilibrado em escala planetária com — e o mais importante — alguma dimensão filosófica. A lei de Mackinder era: quem controla a Europa Oriental, controla o Heartland, e quem controla Heartland, governa o mundo. Para Mackinder, era crucial controlar todo o Heartland, ou Poder Terrestre. A Europa Oriental é apenas parte da verdade, porque todo o Crescente Interior deve ser controlado pelo Poder Marítimo.
Mas concentremo-nos nesta parte da frase: “Quem controla o Heartland, governa o mundo”. Este é o ponto mais importante. Se Heartland é controlado de fora, o mundo é governado pelo Poder Marítimo. Isso significa o ideal democrático, o progresso, a modernidade e o capitalismo em escala global. Se o Heartland é governado por si mesmo, pelo Poder Terrestre, é o oposto: eternidade, tradição, ordem, hierarquia, conservadorismo.
Aos olhos de Mackinder, o Heartland é um objeto. Este objeto começa com a Europa Oriental, como no Crescente Interior, a linha costeira da Eurásia. Se o controle dessa linha ou zona costeira for forte o suficiente, não há possibilidade de confronto direto entre a Eurásia, ou o Heartland, e o Poder Marítimo. O Heartland torna-se um objeto. No entanto, se Heartland começa a ser um sujeito, se afirma como um sujeito geopolítico, é despertado ou desperta por conta própria, então há um problema para a dominação global do Império Britânico. Essa foi a principal regra da geopolítica a partir de então. A luta pela Eurásia é uma aplicação desse princípio.
O seguidor de Mackinder, Nicholas Spykman (1893-1943), desenvolveu sua teoria de uma espécie de versão ampliada da de Mackinder, com ênfase no Rimland. Spykman disse: Quem controla o Rimland, controla o Heartland. Quem controla o Heartland, governa o mundo.” Mackinder estava concentrado na Europa Oriental — afinal, ele era um alto comissário da entente na Ucrânia, tentando dividir e separar a Ucrânia do Império Russo. A mesma ideia foi retomada por Brzezinski e colocada em prática em 2014 no Maidan. Estamos vivendo dentro do mundo de Mackinder e não podemos sair dele.
Spykman disse que precisamos dar a maior importância ao Rimland em geral. Para governar o mundo em geral, devemos separar o Extremo Oriente da Rússia, exercer todo o controle sobre a China a partir do mar, controlar o Oriente Médio, Norte da África, Índia, Paquistão, Irã, Turquia e toda a Europa, e diminuir a zona de controle.
Este é o mapa mental americano. A estratégia americana segue toda essa linha. Esses mapas foram desenhados no início do século XX, e este na década de 1920, mas são tão atuais hoje. Na visão anglo-saxônica, o poder marítimo é o sujeito e o poder terrestre é o objeto. Em 2005 conheci Zbigniew Brzezinski em Washington, e havia um tabuleiro de xadrez entre nós. Perguntei: “Sr. Brzezinski, você considera o jogo de xadrez para dois jogadores? Ele disse: “Não, é para um.” Esse é o típico entendimento ocidental, a visão anglo-saxônica, da geopolítica. O xadrez é um jogo para um jogador, ou seja, há apenas um sujeito, e o outro não é um jogador, mas um objeto, cuja mão deve ser movida. Essa é a atitude básica da visão anglo-saxônica da geopolítica. O principal objetivo da geopolítica anglo-saxônica é cercar o Heartland controlando o Rimland, impedindo o Heartland de ter acesso aos mares quentes e romper o bloqueio costeiro. O objetivo principal é dominar o mundo controlando a Eurásia a partir do mar.
O futuro declínio da Grã-Bretanha e a ascensão dos Estados Unidos foram previstos já no final do século XIX por alguns imperialistas britânicos, como Sir Cecil Rhodes (1853-1902) e seu grupo, a Távola Redonda. O almirante Mahan, como já disse, considerava os Estados Unidos uma potência marítima. Não era evidente que os EUA fossem uma potência marítima quando Mackinder escreveu seu primeiro artigo. Ele considerava a América do Norte uma espécie de Poder Terrestre — isolacionista, fora da política global, e não em competição com a Grã-Bretanha, mas um espaço marginal e periférico. Mas Mahan considerava os Estados Unidos, com base no crescimento de sua marinha, como Poder Marítimo. Depois que Woodrow Wilson envolveu os EUA na Primeira Guerra Mundial, começou um evento ou processo geopolítico muito importante: a mudança do centro do Poder Marítimo da Grã-Bretanha para os Estados Unidos da América. Isso foi realizado ao longo de 20 anos desde o fim da Primeira Guerra Mundial até o fim da Segunda Guerra Mundial. Durante esse intervalo de tempo, todas as colônias da Grã-Bretanha foram ‘dadas’ aos Estados Unidos. Houve uma mudança do centro de dominação global dentro do espaço anglo-saxão da Grã-Bretanha para os Estados Unidos. Esse foi o principal evento no nível geopolítico.
Muito simbolicamente, o último artigo de Mackinder foi publicado em uma revista americana, Foreign Affairs, cuja organização editorial, o Council on Foreign Relations, foi criada pela elite americana logo após a Primeira Guerra Mundial para promover a visão wilsoniana dos Estados Unidos como uma potência global operando em defesa do capitalismo, da democracia e assim por diante. Essa foi uma mudança teórica e intelectual do centro da tomada de decisões e do sujeito. Esta foi uma espécie de transição do Poder Marítimo. Depois disso, a Grã-Bretanha tornou-se o “velho poder”, o “sênior”, o “velho” que cuida de seu jardim e oferece alguns conselhos, mas não é o sujeito real.
O verdadeiro sujeito, a partir de agora, da primeira metade do século XX, deslocou-se da Grã-Bretanha para os Estados Unidos. Tudo o que Mackinder disse sobre a estratégia da Grã-Bretanha foi aplicado, ponto por ponto e palavra por palavra, aos Estados Unidos da América, sobretudo na segunda metade do século XX. Antes da fundação do Conselho de Relações Exteriores, os Estados Unidos não “pensavam no mundo”; eles não tinham relações exteriores, e estavam absolutamente concentrados em suas questões internas antes da Primeira Guerra Mundial, antes de Wilson e seus 11 pontos que declaravam que os Estados Unidos da América deveriam ser uma potência global e defensora global do liberalismo, do capitalismo, da democracia — precisamente Poder Marítimo. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tornaram-se o principal, o único Poder Marítimo por excelência. O resto tornou-se objeto ou ferramenta nas mãos dos americanos.
Os primeiros a ler com atenção as ideias de Mackinder foram os alemães — não os russos, que estavam envolvidos em outros problemas intelectuais e políticos. Os alemães despertaram para a geopolítica e, nos primeiros 20 a 30 anos do século XX, começaram a ler Mackinder e a aceitar a geopolítica.
Primeiro foi Karl Haushofer (1869-1946), um geógrafo político e general alemão que foi adido militar no Japão durante a década de 1920. Ele trouxe consigo do Japão uma palavra interessante, 地缘政治 chi sei gaku, ou “geopolítica”. Ele descobriu e aceitou as idéias de Mackinder e reconheceu a Alemanha, assim como Mackinder afirmara, como parte do continente, como potência terrestre.
Assim Haushofer começou a desenvolver o conceito de como criar uma geopolítica continental, não como um objeto dos anglo-saxões, mas como um sujeito que lutará conscientemente, não apenas como uma ferramenta, mas como uma espécie de poder consciente. Sua ideia era exatamente oposta à de Hitler, pois Haushofer dizia que só havia duas possibilidades para a Alemanha. Primeiro, a Alemanha faz parte do Continente, ou Poder Terrestre; é conservadora, tradicional, hierárquica, etc., quase não tem colônias nem “progresso”, mas é uma sociedade tradicional. E sendo assim, de acordo com Haushofer, então a Alemanha deve estar alinhada em um eixo, sobre o qual Haushofer publicou o artigo “O Eixo Berlim-Moscou-Tóquio”. Assim, para ser o poder terrestre em sua dimensão adequada, a Alemanha deveria estar aliada à Rússia — então, a Alemanha nazista deveria estar aliada à Rússia comunista. Essa era a lei da geopolítica que ia contra a ideia de Hitler, mas Haushofer disse que se você quiser seguir as regras da geopolítica, você pode ficar do lado do Poder Marítimo e, nesse caso, a Alemanha deveria concluir um tratado ou aliança com os britânicos e os americanos. Mas não se pode lutar [em duas frentes], ou você será destruído — esse foi o ditado profético de Haushofer. A geopolítica é, portanto, uma espécie de profecia que sempre se cumpre, seja ignorada ou aberta. Haushofer disse a Hitler para encontrar um caminho para uma aliança com a Rússia, como foi tentado no Pacto Ribbentrop-Molotov, ou com o Ocidente, como foi tentado com o acordo de Munique entre os países ocidentais e a Alemanha. A única coisa que era geopoliticamente impossível era lutar em duas linhas — isso era uma heresia geopolítica, de acordo com Haushofer. Essa foi a escola alemã que enriqueceu a geopolítica ao criar doutrinas, textos, análises intelectuais baseadas na aceitação da análise de Mackinder.
Mas uma compreensão mais profunda da geopolítica foi dada por outro filósofo alemão, que é muito mais sério e profundo do que Karl Haushofer: Carl Schmitt (1888-1985). Schmitt foi o maior pensador político do século XX. Ele é conhecido em todos os países e universidades da Europa, exceto na Alemanha, onde é proibido. Nos Estados Unidos há um grande interesse por Schmitt, e seu seguidor Leo Strauss é considerado o professor dos neoconservadores. Há um grande número de seguidores de Carl Schmitt também na esquerda, tanto na esquerda pós-moderna europeia quanto na latino-americana, por comunistas, anarquistas, etc. Ele é o autor mais lido em ciência política, e eu fico muito feliz por ele ser muito conhecido na China. Na Rússia ele é muito popular também.
Em seu livro Land und Meer, Carl Schmitt aprofundou a compreensão do que são Terra e Mar. Ele usou os nomes bíblicos Leviatã, a Serpente do Mar, e Behemoth, o Poder da Terra. A luta entre Poder Marítimo e Poder Terrestre foi apresentada por Schmitt como a luta escatológica entre Leviathan e Behemoth, dois grandes monstros, que correspondem a duas visões de mundo opostas, ou Weltanschauungen em alemão. Ele fez uma clara identificação entre Poder Marítimo e modernidade, capitalismo, liberalismo, democracia, materialismo, ciência moderna — tudo isso foi uma espécie de ‘resultado’ do Poder Marítimo. Carl Schmitt deu ao conceito de Poder Marítimo um enorme e novo significado, que foi um desenvolvimento do que Mackinder já tinha em mente, mas foi tão brilhantemente exposto que transformou a geopolítica em uma abordagem filosófica e filosofia política, não apenas no mapa estratégico.
O mesmo foi declarado pelo autor conservador britânico — católico como Schmitt — Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), que teve duas esposas, ambas sérvias. Também aqui a geopolítica adquiriu uma dimensão metafísica. A Grande Guerra dos Continentes foi considerada uma espécie de batalha escatológica e bíblica para o Fim dos Tempos. Não era apenas sobre quem controla o Heartland e o mundo, mas sobre qual é o objetivo de controlá-lo. Carl Schmitt perguntou qual é o objetivo de controlar — não o poder em si, não apenas em um sentido pragmático, não como um jogo de poder, mas como algo mais profundo, como a batalha final pelo Fim dos Tempos, que na visão cristã significa o Reino do Anticristo ou o futuro Reino de Cristo. Esta foi uma atitude moral cristã acrescentada. Com essa dimensão, a geopolítica ganhou uma dimensão escatológica. Escatologia é a ciência do fim dos tempos ou do que deve acontecer como resultado da História, no Fim da História, no sentido hegeliano, não de Fukuyama.
O resultado da Segunda Guerra Mundial foi que Hitler negligenciou totalmente o conselho de Karl Haushofer. Não havia mais Alemanha, não havia mais Hitler, não havia mais nacional-socialismo, por causa da guerra suicida que custou à humanidade muitos milhões de vítimas. Logo após a Segunda Guerra Mundial, começou a Guerra Fria, onde novamente havia uma ilustração pura do mapa clássico da geopolítica. Havia o campo soviético, do qual a China fazia parte, o campo socialista, contra o campo capitalista. Houve um momento em que o campo soviético e os países comunistas e anticapitalistas adquiriram a dimensão geopolítica de Behemoth. O comunismo era Behemoth em alguns aspectos. Era o Poder Terrestre. É por isso que o comunismo venceu não nos países industriais e liberais que tinham uma grande quantidade de proletários, mas em países camponeses e agrários como a Rússia ou a China — porque eram potências da Terra. O comunismo venceu no poder terrestre, no contexto do poder antiliberal, antiocidental, anti-mar. Essa é a explicação geopolítica da Guerra Fria.
Mas a ciência da geopolítica e seu destino eram diferentes. Nos Estados Unidos, era considerada a principal estratégia, sempre utilizada. Eles não pararam desde os tempos de Mackinder e Spykman de usar a geopolítica como uma visão básica do que está acontecendo no mundo e na política, mas com o esforço alemão de criar uma geopolítica alternativa tendo o continente como tema, essa experiência carregava uma espécie de demonização devido às relações de Haushofer com Hitler e os crimes cometidos pelos nazistas. A parte continental da geopolítica foi destruída como uma “pseudociência”, enquanto a parte anglo-saxônica da geopolítica continuou a ser aceita como estratégia principal. Assim, após a Segunda Guerra Mundial, a geopolítica passou a ter dois significados: (1) algo completamente racional e positivo nos Estados Unidos, e (2) algo impossível, nazista e fascista fora dos Estados Unidos e da Inglaterra. Isso é exatamente como alguém que quer sempre ganhar em uma partida de xadrez opera — a melhor solução é não ensinar o outro a jogar. Este é o “jogo de um”, como Brzezinski explicou honestamente.
A geopolítica foi demonizada para a Europa, mas tomada como uma ferramenta normal para o aprendizado da elite nos Estados Unidos. É por isso que Brzezinski, Kissinger, a Comissão Trilateral e o Conselho de Relações Exteriores pensam exatamente com o mesmo mapa e conceitos, mas a geopolítica é proibida para os demais. É como se houvesse duas geopolíticas: “Geopolitics” em inglês, que é uma ciência boa, correta e racional, e a Geopolitik alemã, que é pseudociência. Se você olhar para o Poder Marítimo do Poder Terrestre, é “pseudociência”. Se você olhar para o Poder Terrestre do ponto de vista do Poder Marítimo, é “ciência”. Isso é completamente tendencioso.
Infelizmente, na União Soviética, por causa da reputação de Haushofer também, a geopolítica era considerada uma “ciência burguesa”. Foi proibida também, então perdemos completamente a geopolítica continental. Havia a geopolítica do Poder Marítimo, enquanto o resto do mundo ficou sem geopolítica. Portanto, havia uma consciência geopolítica reduzida por parte da Terra, considerada como um objeto. Não ensinamos linguagem humana ou ciência a cães ou gatos, por isso os consideramos “estúpidos”. O mesmo acontece com a geopolítica. Enquanto alguns declaram que a geopolítica deve ser reservada para a elite dominante anglo-saxônica, eles tratam os outros como inimigos a quem não se deve ensinar essa “pseudociência”. Por isso há tantos debates sobre geopolítica, porque é uma ciência proibida para o Outro, enquanto no mundo anglo-saxão, ela floresce como uma ferramenta normal e necessária para a elite anglo-saxã americana.
Após a queda do comunismo, a sociedade soviética e russa perdeu a compreensão do que está acontecendo. Todos sentiram que algo tinha dado errado, mas ninguém tinha nenhuma explicação. Nós não éramos mais comunistas, mas capitalistas e liberais, se perguntando por que a OTAN está se expandindo, não nos aceitando em seu clube, continuando a nos tratar como um inimigo após a destruição do Pacto de Varsóvia e dos países soviéticos. Estávamos “libertando” a Europa Oriental, incluindo algumas partes da União Soviética, enquanto a OTAN, ainda em expansão, tentava tomá-los. Antes a Aliança do Atlântico Norte era uma potência marítima, lutando a nível geopolítico contra o Poder Terrestre, representado no nível ideológico pelos comunistas. Após a queda da União Soviética, não havia mais “razão” para lutar, mas a batalha continuou. Isso criou uma espécie de estresse, um choque intelectual para nossa elite política, nosso exército e serviços secretos, porque os liberais russos tentaram se tornar parte do mundo global. Eles não se importavam com soberania, tradição ou conservação dos valores russos, tudo isso para eles era negativo. Mas o estado real, o Deep State russo, teve que reagir de alguma forma.
O colapso do sistema comunista desarmou Moscou ideologicamente, pois eles não conseguiam explicar ou entender a política externa. A política externa e a estratégia militar da URSS baseavam-se no conceito de confronto entre o campo socialista, o Oriente, e o campo capitalista. A razão desse confronto foi vista justamente apenas em termos ideológicos. Além da ideologia, não deveria haver conflito, mas o conflito continuava. Quando essa visão ideológica foi perdida, a Rússia se desarmou unilateralmente e fingiu ser tão capitalista, democrática e liberal quanto o Ocidente. Não havia razão ideológica para continuar a oposição, mas o Ocidente continuou a expandir a OTAN para o Oriente, engolindo a Europa Oriental e estrangulando a Rússia. Isso criou uma dissonância cognitiva. Algo não se encaixava. Havia uma espécie de esquizofrenia no Estado e na sociedade. Por que eles estavam contra nós, quando não estávamos mais contra eles? Não fomos derrotados nessa situação, então foi nosso livre arbítrio parar o confronto, mas eles continuaram-no. Por quê? Onde está a razão lógica para tal?
Foi precisamente neste momento, no início da década de 1990, que a geopolítica foi descoberta na Rússia, na Academia Militar do Estado-Maior e em outros lugares. Isso foi feito com a nossa ajuda, porque eu não era comunista. Eu estava muito interessado em outras filosofias e descobri valores conservadores antes da queda do comunismo, ficando um pouco distante da ideologia dominante. Poucas pessoas estavam preparadas para responder. Estabeleci no final da década de 1980 relações com alguns círculos conservadores e tradicionalistas na Europa que estavam muito interessados em Carl Schmitt e geopolítica. E quando houve a queda do comunismo, tentamos explicar aos nossos generais, aos nossos militares, o que aconteceu do ponto de vista geopolítico. Essa era a única razão: dar uma explicação racional do que estava acontecendo agora, após o fim da União Soviética, fora da ideologia comunista, responder como podemos explicar esse confronto, oposição e luta fora da ideologia. Os liberais no governo e na sociedade rejeitaram essa abordagem, porque continuaram a seguir as regras do Ocidente. A geopolítica era “ciência proibida” ou “pseudociência” — Soros veio à Rússia para dizer que “a geopolítica está toda errada” — para a Rússia e para a China, mas não para eles.
Pouco a pouco, conseguimos estabelecer a geopolítica como a principal abordagem estratégica da Federação Russa. Através do estado profundo, através dos círculos militares, através dos patriotas, conseguimos tornar a geopolítica muito famosa, conhecida, e agora em todas as universidades e instituições da Rússia, tanto nas ciências humanas quanto nas sociais, eles ensinam geopolítica. Foi assim que a geopolítica se tornou o principal campo teórico na Rússia.
Em Xangai, na China, há alguns meses, em junho, conheci o Dr. Feng Shaolei (diretor do Centro de Estudos Russos da East China Normal University) em uma entrevista coletiva com o Prof. Zhang Weiwei organizada por guancha.cn, e ele disse que havia acabado de voltar do Valdai Club e encontrou o Sr. Putin. Este professor chinês perguntou ao Sr. Putin: “Qual é a base teórica sobre a qual você faz suas orientações políticas?” Putin respondeu: “Geopolítica, não ideologia”.
Começamos na década de 1990, mas houve uma séria mudança de paradigma com Putin. Agora, a geopolítica é a atitude predominante na estratégia russa. Foi assim que se estabeleceu a escola geopolítica russa, como continuação das ideias de Haushofer, exceto pelo papel do sujeito no dualismo geopolítico, pois no caso da Rússia tínhamos muito mais fundamento e razões para isso: desde que a Alemanha foi o Heartland europeu, nós somos o Heartland absoluto, de acordo com Mackinder. Este é o conceito de Eurásia, nascido naquele momento.
Esta foi a aceitação do título, posto ou posição de um sujeito no mapa geopolítico. Esta foi a aceitação da relevância da geopolítica anglo-saxônica clássica e do dualismo básico de Mackinder. Com a afirmação de Heartland como sujeito, Behemoth torna-se consciente naquele momento. Houve a identificação dos EUA e da OTAN como forças antagônicas, mas reconhecidas como sujeitos também — isso é uma diferença. Na geopolítica eurasiana, reconhecemos que o poder marítimo é um sujeito. Não existe apenas um jogo de um sujeito/um objeto. São dois assuntos. Somos contra eles, mas os reconhecemos como um inimigo formal de acordo com a teoria de Carl Schmitt. Eles se constituem como tal para nós e nos ajudam a nos entender, como no par do conceito de Amigo e Inimigo de Carl Schmitt. Consideramos que eles têm o direito de existir, mas não de nos governar e o espaço que consideramos naturalmente nosso.
Toda a política de Putin é sobre a restauração da soberania, tirando-os do nosso espaço, não deixando que eles nos imponham seus princípios ou sua estratégia de poder marítimo, porque temos uma identidade diferente. Levar em conta a tradição continental alemã, que era ambivalente e não tanto realmente continental e levar em conta a profundidade metafísica em Carl Schmitt foi muito importante na criação da escola russa de geopolítica. Então, descobrimos que, já no início do século XX, na emigração da Rússia Branca, havia um movimento que se chamava movimento eurasianista e, para minha surpresa, um dos fundadores desse movimento, Petr Savitsky, que era um geógrafo, havia lido Mackinder e já havia feito os primeiros esforços para propor a compreensão da Rússia como Eurásia, como Heartland, contra o Poder Marítimo. Esta foi uma continuação da tradição eslavófila na cultura russa.
Começando pelos anglo-saxões e passando pelos alemães, descobrimos em nossa própria tradição russa uma marginal afirmação disso. Antes, os eurasianistas eram quase desconhecidos, porque eram anticomunistas e, portanto, não eram conhecidos na Rússia Soviética, mas eram a favor da União Soviética contra o Ocidente — eram marginalizados na emigração porque não eram a favor do Ocidente, e eram anti-nazistas e anti-CIA, enquanto a outra parte da emigração branca colaborou com serviços especiais ocidentais para combater o comunismo. Os eurasianistas eram uma pequena minoria nessa emigração, porque eram a favor do comunismo soviético por razões geopolíticas, por causa do ódio ao Ocidente, mas não eram comunistas. Assim, refundamos o movimento eurasianista, porque descobrimos que havia alguém como nós que previu anteriormente com precisão que haveria um momento em que o comunismo cairia como uma ideologia anti-russa — muito materialista e sem uma compreensão de identidade, tradição, tradições espirituais, a tradição cristã, destruindo tudo isso — e depois disso deveriam vir os eurasianistas, para continuar a luta pela independência e soberania, que era um lado positivo do regime comunista, inclusive na oposição de Stalin ao Ocidente e oposição soviética ao Ocidente em geral. Descobrimos nossos próprios eurasianistas de uma maneira ou caminho muito especial, dos anglo-saxões aos alemães até nossas próprias raízes.
Enquanto o primeiro programa sobre isso foi publicado em 1997 em meu Fundamentos da Geopolítica, os primeiros textos foram publicados logo após a queda do comunismo, em 1991 em uma revista chamada Den’ [“Dia”], cujo editor-chefe era Alexander Prokhanov, agora o presidente do Izborsky Club, um dos principais think- tanks conservadores [na Rússia]. Foi justamente aí quando começamos a promover o eurasianismo e a criação do movimento eurasiano veio 10 anos depois. O início da criação da escola geopolítica russa e da atitude eurasiana começou logo após a queda da União Soviética, e foi exatamente isso que os primeiros eurasianistas pensaram que aconteceria.
Sobre a contra-estratégia da geopolítica eurasiana: Se há um sujeito, então há um segundo. Existe o poder marítimo e o poder terrestre. Há o velho Rimland. Há a luta pelo controle, porque o Poder Marítimo quer tornar essa zona mais ampla, e o Poder Terrestre busca tornar essa zona menor. O importante é que agora a Rússia não é a União Soviética; não é um dos dois polos. Não temos capacidade, possibilidade, recursos e ideologia para nos impor como o principal poder governante de Rimland. Essa é uma mudança muito importante da bipolaridade no dualismo Poder Marítimo-Poder Terrestre para a multipolaridade.
Podemos tornar este Rimland seguro para nós sem colonizá-lo, o que é simplesmente impossível, criando amigos, uma aliança e ajudando, de forma simétrica, diferentes potências a crescer e se tornarem cada vez mais independentes do Poder Marítimo. Isso explica por que não temos nenhum desejo ou capacidade real de seguir a estratégia czarista ou soviética de maior ou menor bipolaridade e não temos ideologia. Não há ideologia na Rússia — a Rússia é pragmática, é um pouco liberal, mas não liberal como no Poder Marítimo, um pouco nacionalista, patriótica e conservadora, com uma sociedade parcialmente tradicional sob o crescente papel da Igreja Ortodoxa e um sentimento crescente de identidade, mas isso não é ideologia: não poderíamos ir ao Irã e dizer “aceite nossa ideologia”, pois não temos nada disso, e não poderíamos ir à Turquia, Índia ou China com tanques, e não podemos exportar nada do tipo.
Mas como, nessa situação, podemos nos salvar do Poder Marítimo? Por meio da amizade, aceitando o Outro como ele é, aceitando suas identidades. Para nós, não é tão importante que o Rimland seja pró-Rússia ou não — o mais importante é que Rimland não seja pró-americano. Essa é a pergunta principal. Você poderia nos odiar, mas se você não gosta dos americanos, se você não está sob o controle deles, e se você é independente, isso é o suficiente. Podemos apoiá-lo, sendo completamente indiferentes. Não sugerimos nenhuma ideologia, governo direto ou dominação, porque não temos o poder de fazê-lo. Comparado com a União Soviética ou o Império Czarista, nossa fraqueza é nosso principal privilégio. Estamos jogando com nossa fraqueza. Quando os turcos nos veem, eles entendem que em tal situação não poderíamos fazer guerra contra eles — não temos razão para isso. Se eles são muçulmanos, e nós somos cristãos com muitos muçulmanos dentro da Rússia, não temos nenhum problema com eles se não nos atacarem. Quando os povos de nossos antigos inimigos, como turcos ou persas, começam a entender que a Rússia não representa mais uma ameaça, eles começam a ver em nós uma espécie de possível aliado. E, aos poucos, essa aliança está crescendo. Na Síria, organizamos essa aliança de uma maneira muito prática. Esta é a luta pelo Rimland. O Irã é totalmente anti-Poder Marítimo e a Turquia está se tornando assim. Quanto mais anti-Poder Marítimo é Erdogan, mais ele é amigo de Putin. Essa é toda a geopolítica que é real agora.
A principal mudança foi justamente com Putin, que aceitou essa visão. Yeltsin e os liberais rejeitaram essa visão. Por quê? Porque eram ferramentas do Ocidente e nada mais. Não eram políticos russos propriamente ditos, mas políticos ocidentais tentando dissolver o poder da terra. Eles são chamados de Quinta Coluna na Rússia, pois tentaram abrir a porta para o inimigo e deixá-lo entrar.
A nova estratégia do Heartland não pode mais ser bipolar. Só pode ser multipolar, com toda a sinceridade. Esta não é uma espécie de versão “oculta” da velha bipolaridade, pois tal é impossível na situação atual. Não podemos deixar que o Poder Marítimo governe o Poder Terrestre. Isso é essencial. Só podemos tornar isso possível com a ajuda de outros polos.
Ao mesmo tempo, descobrimos as ideias de outro conceito schmittiano: os grandes espaços. Os Grandes Espaços são mais ou menos “polos”, mas alguns Grandes Espaços já estão plenamente estabelecidos, alguns estão em processo de criação, enquanto outros estão em processo de declínio.
Aqui está um mapa onde estão os diferentes Grandes Espaços que começamos a tratar de forma aproximada, no sentido prático. Claro, eles podem ser organizados de forma diferente. Se alguns são muito fracos, eles podem se tornar parte dos mais fortes. Esta é uma situação muito dinâmica, não algo fixo. No entanto, este mapa que representa os Grandes Espaços é o mesmo que o mapa das civilizações de Huntington. Esses Grandes Espaços coincidem aproximadamente com “civilizações”, daí a concepção de que um polo no mundo multipolar não deveria ser um país ou potência no antigo entendimento, mas novos atores, que deveriam ser civilizações. As formas ou expressões estratégicas dessas civilizações são os Grandes Espaços. O conteúdo e o sentido disso são civilizações. Vemos nesses Grandes Espaços, nesse conceito, as principais linhas de força da política russa.
O que queremos do Grande Espaço Europeu é uma coisa: que a OTAN saia e que crie conosco uma espécie de estratégia eurasiana. Por isso, estamos ajudando a todos que compartilham essa ideia e que são contra o atlantismo — esquerda ou direita, não importa, daí o apoio aos populistas. Essa é a nossa contra-estratégia. Putin afirma o conceito de Grande Eurásia-Grande Europa de Lisboa a Vladivostok. Essa é a ideia para a Europa, mas isso não é tudo: precisamos de algo para propor ao espaço continental islâmico, incluindo Turquia, Irã, Paquistão, Afeganistão, e não podemos impor a eles nossa visão, cristianizá-los ou impor alguma ideia — ninguém quer isso. Devemos aceitá-los como islâmicos e tentar estabelecer uma aliança estratégica com eles. O mesmo vale para o espaço árabe-islâmico, o mesmo para a Índia, a China, o Japão. Estou falando de todas as possibilidades.
Por que Putin quer dar as Ilhas Kuril ao Japão? Para tentar transformar o Japão de inimigo, sob o controle do Ocidente, em potência neutra. Talvez não aconteça, mas o importante é a lógica, que estou tentando explicar, de como a lógica dos Grandes Espaços se reflete na política externa concreta da Rússia. Isso é geopolítica pura. Estamos adentrando no espaço trans-saariano também junto com os chineses. Estamos tentando ajudar algumas forças no Grande Espaço da América do Sul, no Grande Espaço da América Central, e se o Grande Espaço da América do Norte for limitado por esta região, eles podem ser nossos amigos. Por que não? Eles são muito interessantes, quando são colocados em suas fronteiras civilizacionais naturais. Quando Trump começou sua campanha, ele prometeu parar as intervenções, retirar as forças americanas de todo o mundo e concentrar-se nos problemas internos. Não acreditávamos nele, mas o aplaudimos. Esse é absolutamente o caminho certo para tornar a América grande novamente.
Não estamos sozinhos neste mundo com nossos planos. Há outro mapa, muito mais aterrorizante, eu diria, que é o que os globalistas do Poder Marítimo querem fazer. Esta é uma visão completamente diferente. Estamos mudando do ponto de vista do poder terrestre para o do poder marítimo.
O que eles propõem é uma situação completamente diferente. Eles não podem mais ignorar os chineses, então a ideia deles é incluir a China em seu plano futuro, proposto como “G2” por Hillary Clinton quando ela veio para cá e foi recebida com muita educação, mas sem muito sucesso. A China está pensando no que fazer nessa situação, enquanto lida com todas as possibilidades geopolíticas. Não está pronta para aceitar nada cedo demais ou com muita facilidade, mas os globalistas estão prontos para incluir a China como uma potência marítima capitalista e liberal, com Xangai, essa área costeira de prosperidade, mas talvez sem a parte interna de Xinjiang, Tibete e China continental com seu campesinato e sociedade tradicional, que é a principal base do Partido Comunista, que não pode ser aceito no plano dos americanos. Então eles vão se preocupar em mudar a situação para empurrar mais liberalização, capitalização, e “direitos humanos” aqui. Esse é o trabalho da rede de Soros, a Quinta Coluna e a Sexta Coluna, como em todos os lugares. A China será o principal satélite neste conceito, com certas condições. O outro satélite principal é a zona europeia. Este é mais ou menos o desejo da elite política americana, de ver o mundo como tal. Eles já semearam o caos no norte da África e no Oriente Médio, criando um estado curdo, tentando diminuir a influência da Turquia, Irã, Síria e destruindo tudo, mas não criando nada. Este é mais ou menos o desejo da elite política americana, de ver o mundo como tal.
A estratégia do caos não sugere a criação ou um novo sistema político ou ordem em vez dos sistemas políticos destruídos. É um caos manipulado e moderado — uma nova maneira de pensamento estratégico. Se lermos com atenção o livro de Brzezinski, The Grand Chessboard, está escrito que eles precisam de uma Eurásia balcanizada, para transformá-la em zona de conflito permanente entre diferentes grupos — entre muçulmanos, entre grupos étnicos, entre russos e ucranianos, por exemplo. Isso foi ideia de Brzezinski. O caos já está semeado na África, então eles não precisam se preocupar muito com isso, enquanto agora os russos e chineses estão vindo aqui para trazer outra ordem, talvez não a melhor, mas não o caos sangrento como é a situação atual. Há pontos diferentes — proxies menores, em parte a Índia, em parte alguns pequenos estados pró-ocidentais e Israel por agravar e tornar o caos maior. Proxies menores, como a Ucrânia, por exemplo, não são aliados nesse conceito, mas apenas pontos para aumentar o caos. É mais ou menos assim que eles entendem a situação.
É por isso que o conceito de paz e polos independentes está ausente em qualquer de seus planos. É uma espécie de profecia auto-realizável. Eles não permitem que nem mesmo um sistema quadripolar tenha qualquer apelo; eles não podem deixar isso acontecer, mesmo teoricamente, porque conhecem o poder das palavras. Eles destroem qualquer menção à multipolaridade. Todos os livros de especialistas americanos, estrategistas, “adivinhos” como gosto de dizer, e analistas políticos tentam destruir e eliminar esses polos. Deve haver apenas caos, e por ter caos, eles podem criar um mundo no qual eles ainda podem ter poder global e governar o mundo. Eles não governarão adequadamente a Eurásia com um governo melhor — eles não precisam absolutamente da Rússia; eles culpam a Rússia e Putin não porque não gostam de Putin, mas porque não permitem que a Rússia seja. Isso é ontológico. É o Poder Marítimo vs. Poder Terrestre. Nada pessoal. Putin poderia seguir algum acordo concreto com eles, mas eles não consideram a Rússia como um sujeito, apenas caos.
Mas se reconhecermos o polo da Eurásia, veremos uma situação completamente diferente. Em primeiro lugar, as zonas europeia e chinesa tornam-se imediatamente independentes. Eles perdem sua certa dependência do Ocidente, sem trocar essa dependência pela dependência da Rússia. No Japão, com o Ministro das Relações Exteriores, tentei explicar isso aos japoneses, mas eles disseram: “Você quer estabelecer o domínio eurasiano em vez do domínio americano. Quando os americanos saírem, você virá.” Eu disse: “Você não entendeu a ideia principal”. Se eles estiverem aqui, haverá apenas caos. A China e a Europa serão dependentes do Ocidente, sejam reconhecidos como “aliados multilaterais” ou qualquer outra coisa, mas com a Rússia aqui, vocês serão independentes — deles, mas também de nós, porque não podemos ameaçá-los. Todos os outros obtêm independência.
Independência não é felicidade ou um final feliz. É um desafio, porque você deve ser forte e ter uma identidade. A independência é o fardo do mundo multipolar. Não é um presente. É uma chance de afirmar a identidade. Para os partidários da identidade, da cultura e do espírito das civilizações, é uma dádiva, mas para os governos é um fardo enorme, porque são responsáveis por organizar e administrar sem soluções prontas. Agora, no mundo unipolar, eles sugerem que você deve seguir a regra deles, fazer isso e aquilo, e tudo ficará bem — talvez não agora, talvez você devesse passar por alguma terapia de choque e assim por diante. Mas a independência é liberdade real e uma chance real, uma chance que está aberta. A história não termina aí. A história está aberta.
Hoje, o dualismo geopolítico adquire uma nova dimensão. Não é mais bipolar como no Ocidente vs. Heartland. É unipolaridade e globalismo versus multipolaridade, a ordem das civilizações ou Grandes Espaços.
Podemos identificar o projeto eurasiano com a famosa estratégia win-win chinesa? Certamente não. Porque a Poder Marítimo vai perder sua dominação e protagonismo, como aconteceu no momento unipolar. Eles tiveram a chance, após a queda do comunismo, de dominar e governar o mundo. Eles aproveitaram essa chance, essa possibilidade, ao longo de 10 anos, nas com o 11 de setembro e a chegada de Putin ao poder, sua dominação foi limitada. Então, por que não um win-win? Porque alguém tem que pagar pela multipolaridade. Se houver multipolaridade, alguém tem que perder. O Heartland continental pagará pela multipolaridade? Ou será a dominação global do Ocidente que perderá? Esta é uma estratégia win-lose, isto é, uma luta aberta e continental na qual não há solução neutra.
Uma solução é a multipolaridade. Do outro lado está a unipolaridade e a globalização. Isso não é um win-win. Mas, ao mesmo tempo, a saída, o sucesso ou o fim de tudo isso não está dado. É história aberta. O fim da história terminou. Falei sobre isso com Fukuyama em Washington, e desde então ele reconheceu que estava com muita pressa para declarar que o fim da história já aconteceu. Agora o fim da história terminou. Não há mais fim de história. A história está aqui, com todas as possibilidades, perigos, todos os riscos, todas os finais abertos e finais móveis dentro do contexto da história aberta. Na história, não há win-win. Alguém deve perder. A conclusão, de acordo com a visão de mundo eurasianista, é que a Poder Marítimo deve perder desta vez, e nós devemos vencer.
Palestra nº 2 lida no Instituto da China da Universidade Fudan, Xangai, China, dezembro de 2018.