O mito da borboleta dourada

Nota do Tradutor

Evgeny Vsevolodovich Golovin (26 de agosto de 1938 – 29 de outubro de 2010), foi um brilhante poeta, ocultista, esoterista, alquimista, místico e compositor. Uma das mentes mais brilhantes de sua época, Golovin possuía a sensibilidade para notar as operações Alquímicas nas grandes obras da literatura. Em seus diversos textos sobre mitologia, Golovin vai além até mesmo da análise esotérica, buscando uma unidade de linguagem entre o ocultismo e as grandes obras da literatura mundial. De fato, não é um trabalho fácil, mas Golovin consegue ser brilhante em uma tarefa tão complicada: de Doyle até Lewis Carrol, vai traçando em seus diversos ensaios sobre mitologia um paralelo muito interessante, pertinente aos estudiosos e praticantes da Alquimia: como sabemos, a Grande Obra possui em si mesma todas as possibilidades da alma humana. Uma obra literária, portanto, seria uma expressão de alguma possibilidade contida na Grande Obra Alquímica – buscar estes paralelos é tão difícil quanto decifrar os enigmas, símbolos e parábolas alquímicas.

Como no caso deste texto, em sua análise sobre a borboleta dourada, Golovin consegue identificar com brilhantismo o símbolo do mito com uma passagem de “Alice no País das Maravilhas”. No século XX, muitos se aprofundaram no estudo da Alquimia, mas poucos conseguiram interpretar a Alquimia como um contraponto à arquimodernidade, algo que Golovin fez com muito brilhantismo.

Este artigo é parte do projeto “Artigos Selecionados”, uma coletânea de artigos de Golovin, traduzidos do russo para o português.

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O mito da borboleta dourada

Uma estranha criatura, pouco conhecida nas lendas do hemisfério norte, é muito significativa no sul: a epifania da borboleta dourada é uma das curiosas provas da teoria hermética sobre a intensidade da vida do norte (Polo Norte, como o centro da vida real) e o avanço para a morte, em direção à Antártida. Entomologistas chamam tal criatura de mariposa auri sinistra – borboleta dourada agourenta. Da Amazônia ao Zaire, de Madagascar à Polinésia, vemos crenças sobre a borboleta em diferentes personagens, mas sempre sinistras: não voa para o fogo; pode matar apenas por ser fitada e, na melhor das hipóteses, causar doenças – quando visita um berço, causa a morte do bebê. São inumeráveis as lendas sobre os efeitos nocivos da borboleta dourada entre os povos indígenas. A literatura europeia também presta uma homenagem a este monstro entomológico. Aqui está um resumo da história de Hanns Heinz Ewers, “A Vingança da Borboleta Dourada”: um viajante europeu foi até os extremos da Amazônia para fazer a  coleta  de sua coleção entomológica; após deitar para dormir, viu sobre a mesa uma borboleta dourada; tremendo de impaciência, pegou um grampo de cabelo e prendeu a borboleta. Durante o sono, sonhou com um dragão dourado e acordou: a borboleta perfurada girava em torno de sua cabeça, tentando furar seu olho. Apesar de todos os esforços do colecionador, ela assim conseguiu.

Como é tal espécime raríssima? Não é a maior das borboletas tropicais, no entanto, possui uma envergadura de cerca de 30 centímetros, de uma cor azul-dourada, com uma listra roxa brilhante nas bordas. São vendidas por coletores por cerca de U$ 20-30 mil. Mas, por assim dizer, são mais raras ainda nos sonhos: caso sonhe com a borboleta, o nativo leva a família para outro local até o sonho não mais se repetir, mas se o sonho não desaparecer, ele prefere se transformar em um “dav” (palavra polinésia), isto é, um lunático, sem diferenciar a vida da morte.

Mas as crenças sobre a borboleta dourada são mais ambíguas, o  que mais uma vez prova a falsidade das conclusões definitivas. Os nativos do Zaire, por exemplo, acreditam que a borboleta é um símbolo particular – o “grande símbolo” da ressurreição. Para os jovens, é representada, em suas crenças, pela “pequena lagarta”, para  os idosos, é a grande lagarta, presa no casulo – crisálida. Por fim, há uma chance (supondo que o morto fora um guerreiro valente ou um mago) de escapar da sepultura voando, em uma noite de lua cheia, como uma borboleta dourada.

Na mitologia do hemisfério norte, a mariposa auri surgiu há tempos imemoriais na extensão metafórica das borboletas comuns. Mas será que isso significa que ela possui um símbolo comum à borboleta ordinária? No México, Egito, Grécia e Escandinávia, a borboleta simbolizava o ponto alto de um ser radical – metamorfose. Para os astecas, “a borboleta obsidiana” encarna o deus do fogo, os escandinavos antigos acreditavam que as borboletas eram as almas dos guerreiros brincando entre as flores. Para os gregos, a psique era representada com asas de borboleta e, na verdade, a borboleta é uma possível tradução da palavra psique. A transformação da atitude perante a vida é impressionante: a alma é uma borboleta para os gregos – uma criatura desfrutadora, lunática, sutil – e a alma, na psicologia moderna, é um campo escuro de caminhos complexos corrosivos e dolorosos, como o pacto com o diabo ou com a Máfia. No Hermetismo, a  “ciência mais auspiciosa”, a borboleta é interpretada como um símbolo especialmente amplo – de fácil analogia gnóstica (corpóreo – homem carnal – lagarta; pneumático – homem espiritual – crisálida; mas com uma explicação alquímica obscura e complexa.

Queremos citar um pouco um dos mais proeminentes textos da alegoria alquímica: “Heinrich von Ofterdingen”, de Novalis. No início do romance, o jovem Henry vê um sonho iniciático de grande beleza. O menino entra em uma paisagem fabulosa, fantasiosa e caminha pelas rochas “… ao entrar na extensão, viu um poderoso raio de luz que, como a queda de uma fonte, subia às nuvens pendentes e se espalhava em inúmeras faíscas, que se agrupavam em uma grande bacia. O feixe brilhava como ouro polido. Não havia qualquer ruído. Um silêncio sagrado reinava em torno de um espetáculo esplêndido.”

A descrição do sono iniciático é tradicional na literatura alquímica. Mas este escritor faz um esforço artístico para estetizar o processo. Temos uma imagem surpreendente da matéria-prima “água”: “Despiu-se e mergulhou o corpo em uma espécie de recipiente cheio de água, estava atônito com as nuvens suaves e sensuais, com suas imagens, pensamentos … as ondas formavam uma caixa maravilhosa, acariciando-o … ondas … palpáveis na dissolução, fazendo surgir uma menina, que parecia dispersa no corpo do jovem “. Depois disso, o fluxo luminoso levou Henry para a praia, e, em seguida, “… um fluxo correu e se desintegrou, desapareceu no ar. À distância, rochas heterogêneas roxas eram vistas. A luz do dia era mais suave e mais transparente do que o habitual, o céu era de um azul mais claro…”. E o foco deste sonho: “os jovens são mais atingidos pelo fenômeno das maiores flores de cor azul  – suas folhas eram ovais e brilhante, em torno do rio…”

Estudos mostram que o azul forte, a epifania da flor azul, é o mercúrio fixado. Qual o papel da borboleta dourada aqui? Novalis silencia sobre isso, mas em livros de Alquimia é fácil de encontrar o seu delicado processo. Avicena refere-se à paisagem do “hermafrodita do país de  safira” e explica: “Quando a nossa flor de lírio azul espalha sua fragrância, ela deposita seu enxofre, chamada pelos filósofos de borboleta dourada”. A poesia hermética (curiosamente) menciona descobertas de criaturas estranhas anteriores às dos entomologistas e zoólogos: os cientistas descobriram a borboleta dourada na Amazônia apenas no final do século XIX; os cisnes negros na Austrália apenas no final do século XVIII. No simbolismo da Alquimia, ambos aparecem, pelo menos, no século XIII. A requintada beleza das imagens e símbolos da Alquimia é de difícil compreensão para o determinismo moderno – estamos acostumados ao tudo ou nada, sem compreensão da realidade – da arte, ciência ou filosofia. E juízos sintéticos como “A Alquimia é isso ou aquilo” deixou o gosto amargo da decepção nos corações. Quando lemos em Avicena: “o pólen da borboleta dourada é o pó de projeção almejada”, acredita-se que é uma alegoria ou metáfora de uma substância ou composto químico. Note, também: “O pólen da borboleta dourada”, diz Irineu Filaleto “é um enxofre branco, iluminado pelo sol em seu mercúrio interno”.

A interpretação das parábolas alquímicas são complicadas e, em primeiro lugar, não podemos fornecê-las e, em segundo lugar, não faz parte da nossa tarefa. Basta dizer: o pólen da borboleta dourada  é chamado de “esperma de ouro”, é o hermafrodita alquímico. No poema “Feiticeiro”, do simbolista francês Jean Richpin (do final do século passado), lemos: “Muito possui quem pouco procura… E o enxofre da crisálida repousa na asa da borboleta dourada”. Não distorça este bonito mistério com a desajeitada especulação do símbolo, pelo contrário, tente resolver a equação na frase igualmente misteriosa: “mas quando você transformar-se em uma crisálida — você irá algum dia, sabe — e então depois disso em uma borboleta, eu acredito que você irá sentir-se um pouco estranha, não irá?”. Pergunta Alice no País das Maravilhas, uma representante alternativa da intelligentsia. Esta é uma das tentativas para decifrar este inseto enigma. De fato: o voo imprevisível das borboletas, em cada momento, segundo matemático Riemann, obedece às leis hipergeométricas desconhecidas. O que disse Alice abre uma certa interpretação para o famoso problema de espaço Chuang-Tzu: “Quem sou eu? Sou um homem que sonhou que era uma borboleta? Ou sou uma borboleta sonhando que se transformou em um homem?”. Se a borboleta dourada coincide com a sua reflexão, obviamente coincide com o meu sonho.

É a centralidade elusiva da vida.

 

https://rafdaher.wordpress.com/2016/11/16/o-mito-da-borboleta-dourada/