- A DIFICULDADE NO ESTABELECIMENTO DA METAFÍSICA AFRO-BRASILEIRA
Entre os mais ignorantes há a ideia de que as vertentes afro-brasileiras não possuem uma doutrina metafísica própria: ela seria, num primeiro caso, inexistente, com a religião como um mero sistema étnico, cultural e social ou, em outra possibilidade, um mero agregado sincrético das diversas influências de suas vertentes: o catolicismo romano popular, o kardecismo e a cultura popular. No entanto, as duas opções estão longe da verdade.
De fato, é possível atribuir diversas influências dentro do universo sincrético afro-brasileiro – levando em conta que não há uma religião afro-brasileira institucionalizada, não há um livro sagrado com doutrinas metafísicas expostas claramente ou mesmo escondidas sob mitos, fábulas e contos, como a tradição judaica-cristã e, além disso, há uma infinidade de nações, casas, vertentes e cruzamentos com doutrinas particulares. Para compreender melhor a questão, é preciso fazer um esclarecimento histórico.
Sabemos que na África também não há uma religião institucional, muito menos uma espécie de religião de “nação”, mas tribos, clãs e famílias que cultuam certos orixás, eguguns e outras forças da natureza ou espíritos dos antepassados, guardando alguma semelhança linguística, ritual e doutrinária, mas sempre de forma particular em cada região. No Brasil, com a divisão dos escravos negros em irmandades de acordo com suas origens na África, o culto passou a ser organizado em nações, embora a intenção dos brancos fosse “cristianizar” os escravos, fazendo com que, dentro das irmandades, abandonassem os cultos africanos. Entretanto, tais irmandades tornaram-se várias “famílias” africanas, que mesmo construindo igrejas e praticando o catolicismo diante de seus senhores, ainda cultuavam de forma clandestina seus antepassados e orixás.
Assim, a religião afro-brasileira não se limita ao Candomblé. Antes, foi estabelecido o Xangô de Pernambuco, o Mina do Pará, o Batuque do Rio Grande do Sul e o Candomblé da Bahia. Com a mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro e com o fluxo migratório, o Candomblé se espalhou pelo Brasil como a religião afro-brasileira em si, mas o fato é que temos várias nações diferentes e várias correntes além do Candomblé – que possui suas origens no Calundu, um culto muito semelhante ao da África, normalmente realizado nas casas das famílias, não em templos, com seus sacerdotes realizando funções parecidas com a de muitos cultos na África: o sacerdote como médico, jurista, consultor espiritual e familiar de uma certa família etc. O Candomblé Jeje, por exemplo, guarda muita semelhança com este tipo de culto, pois as casas jeje são mais “familiares” – o iniciado jeje não é apenas filho espiritual de uma casa, mas é parte da família da casa.
Desta forma, a religião afro-brasileira precisou sobreviver através da formação de uma unidade que não existia na África, através das nações organizadas nas irmandades e, com isso, ocorreu um sincretismo não só com o catolicismo, mas também entre os próprios cultos africanos. No Batuque do Rio Grande do Sul, por exemplo, há sincretismo entre yorubá e jeje. Para alguns mais puristas, o célebre pai-de-santo Joãozinho da Goméia causou escândalo ao tocar os candomblés de Angola e Keto, mesmo com as bênçãos de Mãe Menininha. Mas o fato é que há dificuldade para estabelecer até mesmo um mesmo Candomblé dentro de uma mesma nação – a pronúncia das palavras, alguns ritos e versões das mitologias podem variar até mesmo dentro da própria nação.
Diante disso tudo, há uma dificuldade inicial para estabelecer uma doutrina metafísica dentro das religiões afro-brasileiras – mas a dificuldade desaparece assim que resolvemos buscar a essência das doutrinas, o real significado dos mitos, o simbolismo dos ritos e o significado dos alimentos, ervas e bebidas segundo um mesmo ponto de vista esotérica. Quando chegamos neste ponto, as diferenças existentes deixam de obscurecer a doutrina metafísica. E isso não é algo que deve ser feito apenas nas tradições afro-brasileiras. Nas diversas tradições do mundo, guardando uma certa proporção, encontramos variantes étnicas, sociais e temporais que transformam a prática exterior, mas preservam a essência metafísica. No Judaísmo temos grupos étnicos e culturais que divergem entre si, mas guardam um mesmo ensinamento metafísico.
É óbvio que o estudo detalhado das nações é algo importante (e que faremos em outra oportunidade), mas no que tange à metafísica, o mais importante aqui é buscar uma metafísica comum às tradições afro-brasileiras. Para tanto, analisaremos algumas nações em particular, pedindo ao leitor que não se esqueça que não limitamos a religiosidade afro-brasileira em tais nações, aqui utilizadas como exemplos, não como referência única.
Desta forma, desejamos esclarecer ao leitor que há uma metafísica complexa, perene e rica nas tradições afro-brasileira, de raiz africana em seu ensinamento e forma tipicamente brasileira em sua exposição – eliminando o preconceito em torno dos seus praticantes e mestres, considerados como religiosos “rudimentares”, “presos ao animismo ultrapassado” ou “ignorantes que realizam rituais sem sentido”.
- Os Orixás
Aos totalmente ignorantes, os Orixás são confundidos com “espíritos” ou mesmo “deuses” no sentido dado pelos ocidentais – o que tornaria a tradição afro-brasileira em um politeísmo panteísta. Talvez, essa confusão possa ter ocorrido pelo sincretismo dos Orixás com os santos católicos. Entretanto, o sincretismo ocorreu por imposição do catolicismo, enfrentado com inteligência pelos escravos. Para preservar o culto aos orixás, proibido pelos brancos, os escravos passaram a identificar nos santos alguns orixás, o que levou à seguinte conclusão, por parte de alguns: ora, se é possível cultuar orixás como santos, então isso quer dizer que os orixás são espíritos de grandes homens e mulheres já finados e que ainda se comunicam com os vivos. Mas nada pode ser mais impreciso. Embora, segundo as lendas, Orixás sejam homens e mulheres que, através de grandes feitos e sofrimentos foram efemerizados e divinizados como forças da natureza, como contado por Pierre Verger [1]:
“Um babalaô me contou:
“Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tomaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tomaram orixás por causa de sua sabedoria
Eles eram respeitados por causa da sua força,
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que estes homens tomaram-se orixás.
Os homens eram numerosos sobre a Terra.
Antigamente, como hoje,
Muitos deles não eram valentes nem sábios.
A memória destes não se perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos;
Não se tomaram orixás.
Em cada vila, um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração,
para render-lhes homenagem”.
O curioso é notar que, ao contrário dos homens e mulheres comuns, de memória esquecida após a morte, os Orixás foram uma espécie de heróis que se perpetuaram através de seus grandes feitos – algo que encontra eco em todas as tradições do mundo, que consideravam uma vida após à morte apenas aos heróis.
Ogum, na mitologia, teria sido um grande e sanguinário guerreiro, transformado em Orixá após a tragédia em Irê. Após voltar de longas batalhas, Ogum chegou à Irê em um dia de jejum e silêncio. Com grande fome e sede, não encontrou o que comer e beber e, furioso, massacrou os habitantes do reino, que não se manifestaram para preservar o jejum e o silêncio. Quando se deu conta do ato monstruoso, Ogum largou sua espada e se transformou em Orixá. Orixá da guerra, da agricultura e metalurgia. Foi assim “divinizado” por seu grande valor como guerreiro, aquele que, como Arjuna, na mitologia hindu, é ordenado a Krishna para matar inclusive seus parentes, pois seu dharma é ser guerreiro, é matar na guerra. Assim, como no Hinduísmo e em diversas outras tradições do mundo, notamos na metafísica africana a doutrina da lei das correspondências, mais tarde popularizada nas leis herméticas – tudo é natural e correspondente, todos os mundos estão relacionados. Assim, o Orixá, representado por um homem divinizado, é um intermediário entre os mundos, é uma força da natureza conectada ao homem através das coisas que estão ligadas à sua representação. Cada Orixá possui sua comida, seu elemento, seu modo de ser chamado – como as diversas divindades da Índia, dos celtas, dos nórdicos e do mundo todo. A um cristão, tal ideia pode parecer retrógrada, “animinista”, mas o fato é que a humanidade, em todo o globo, sempre cultuou as forças da natureza e buscava a melhor relação com ela. Vista como um organismo vivo, caótico e ao mesmo tempo amigo e hostil, o homem se via como inserido neste meio e com suas respectivas correspondências com os reinos superiores e inferiores, buscando o equilíbrio da vida em meio às leis que escapam do controle ordinário. Tudo isso sempre fez mais sentido do que a ideia de uma natureza decaída por um homem comer uma maçã e redimido por uma divindade que ao mesmo tempo é amor e carrasco, incapaz de perdoar a falta até enfiar seu próprio filho inocente.
De qualquer forma, essa exposição permite a conclusão de que os Orixás não são deuses segundo o entendimento Ocidental, ou muito menos espíritos dos falecidos, como os santos católicos. O santo católico não é uma força da natureza, nem um homem deificado, mas sim um falecido que, após uma vida devota, foi para a chamada “Igreja Triunfante” e assim pode interceder pelos vivos. Aqui, temos um exemplo de como os escravos sempre foram conscientes de suas doutrinas metafísicas: mesmo com o sincretismo, o ensinamento verdadeiro sobre os Orixás foi preservado. Até hoje, sacerdotes e filhos de casa são conscientes disso, a doutrina foi preservada oralmente e segue viva. E isso só ocorreu pela própria noção metafísica: os escravos m que não faz diferença chamar uma determinada força de Ogum ou São Jorge, o que importa é a ligação com a força correspondente, através de seus elementos correspondentes.
- O Ritual de Iniciação
A iniciação é um rito presente em todas as tradições. Até mesmo no Cristianismo há um debate em torno da iniciação esotérica, pois muitos padres antigos (Policarpo, Dionísio Areopagita e outros) usavam o termo iniciação. Na Liturgia Bizantina, até hoje há uma marca da diferença entre os iniciados e os profanos, quando a Liturgia é encerrada aos catecúmenos (postulantes à fé) no anúncio do sacerdote: “catecúmenos, saiam!”. Com o passar do tempo, o Cristianismo foi se tornando cada vez mais exotérico e o conceito de iniciação em certos mistérios velados foi afastado da mentalidade cristã. Desta forma, muitos cristãos enxergam os ritos iniciáticos das religiões afro-brasileiras como rituais macabros para ligação com “espíritos” ou “deuses pagãos”, quase como rituais de magia negra para consagração a certo demônio. Novamente, temos aqui uma convergência da África com todas as outras tradições do mundo. Na Índia, as escolas filosóficas e dhármicas são profundamente inciáticas, desde o nascimento até a morte, pois é esta a função do rito: relacionar um aspecto da vida orgânica com a hierarquia superior ou inferior, da natureza com a Natureza. Assim, os diversos ritos do mundo diferem no uso das plantas, alimentos, rezas e tabus, mas a essência é a mesma – este aspecto de ligação está sempre presente.
O ritual de iniciação nas religiões afro-brasileiras difere em alguns aspectos, mas a essência é praticamente a mesma. A essência do ritual está no fato do iniciado nascer com seu Ori, a sua cabeça, seu princípio individual escolhido antes de nascer. O Ori é pedido a Ajalá, o modelador do Ori. Aqui, a tradição africana já tratava algo que só ganhou o Ocidente após a introdução da Qabbalah entre os hermetistas, com a doutrina da “anatomia do homem esotérico”, que corresponde cada ponto do corpo humano com uma sephira. Na anatomia africana, a cabeça é dividida como a terra: frente (oju ori), traseira (icoco ori), direita (opa otum) e esquerda (opa ossi) – como na “anatomia do homem esotérico”, que coloca a glândula pineal simbolizada como um dragão, também chamada de José, ou “pai divino do homem”. Assim, faz parte do ritual de iniciação o Bori, que significa justamente “oferta à cabeça”, que é o casamento com o orixá, oferecimento da cabeça, o centro das ações humanas e a escolha de seus caminhos, ao Orixá.
O futuro yaô (iniciado), então chamado abian, é submetido aos ritos que vão liga-lo ao Orixá, o que só será desfeito no axexê (que será tratado adiante): primeiro, a cabeça é “batizada” (massangá), feito com água e obi. Aqui, notamos mais uma semelhança com a doutrina universal: a água como purificadora e um primeiro passo na vida iniciática: io batismo cristão, iniciado por João Batista em jesus Cristo, a mikvá judaica, utilizada pelas mulheres após a menstruação ou parto e também pelos convertidos, a dissolução, segunda fase da Obra Alquímica, feita nas “águas”, que simbolizam tanto a água como potência de putrefação como de renovação. Em seguida, ocorre o nkudiá mutuê ou ori, com a colocação de sangue na cabeça, para transmitir a força (axé, ngunzu ou axé) ao iniciado, o que também é visto em diversos rituais do mundo, quando a força vital é colocada através do sangue – na mitologia judaica, o sangue de animais aparece como elemento que fortalece a ligação do povo judeu com D’us em certas ocasiões, como o sangue que marcou as portas das casas na Pessach, ou ainda a própria crisma católica, que também é feita na testa e é a “confirmação” do batismo e o pacto para a renúncia a Satanás. Em seguida, é feita a “feitura de santo”, com a raspagem da cabeça. É, então, que ocorre a chamada popularmente de “feitura de santo”: após reclusão, cortes, o iniciado renasce, é seu novo nascimento, com todas as fases representando um preparo para sua volta ao útero da própria terra e seu renascimento. No mundo todo, diversos ritos simbolizam esta fase: o casamento alquímico, feito no túmulo interior do iniciado, a ordenação sacerdotal católica também possui uma ideia parecida, inclusive com o antigo costume, principalmente em países ortodoxos, de considerar falecido o nome civil, pois o sacerdote é um homem renascido em sua função, ou ainda a troca de nome feita pelos convertidos ao Islam. Além disso, há outros ritos pelo mundo que fazem algo parecido. O peregrino muçulmano, ao fazer o haji, deve raspar sua cabeça por completo – embora o exoterismo islâmico diga que isso é apenas para deixar claro que na terra sagrada todos os homens são iguais, o esoterismo afirma que há um significado interior e oculto (como em todo o Koran e na Sunnah) e, aqui, podemos notar que o haji, que é a visita à terra sagrada, no mês sagrado, também é um ritual de renascimento: o peregrino tem todos seus pecados perdoados, recebe o título de Haji (peregrino) e através do cumprimento da sunnah relativa à peregrinação imita todos os atos do Profeta Mohamed e, com isso, renasce.
Desta forma, a ideia de renascer, seja através de “fazer a cabeça no Orixá”, do “banho ritual de purificação” (Judaísmo), ou de reviver os atos do profeta na terra sagrada (Islam), para mencionar só alguns exemplos, deixando vários outros esquecidos, é mais uma prova da metafísica africana.
Um outro fator interessante, mencionado anteriormente, é o rito do axexé, que está diretamente ligado à iniciação. Também chamado de sirrum pelos jejês ou de tambor de choro pelo mina, é o ritual fúnebre, iniciado logo após a morte do iniciado. No rito, há uma espécie de “inversão” do ritual de iniciação: a cabeça é desfeita, com a raspagem da cabeça e retirada do Ori colocado anteriormente; um pedaço de pano é enterrado com o morto e outro pedaço é levado ao terreiro, onde continuará o ritual para o iniciado para o falecido ser desligado de seu Orixá aqui na terra. E aqui notamos com mais perfeição a profundidade da metafísica africana, pois não há um ritual apenas para liberar o vivo de sua ligação terrena com o Orixá, mas também um rito que envolve toda a visão metafísica africana. Em primeiro lugar, como as diversas tradições religiosas, a tradição africana não enxerga o homem como um composto simples entre corpo e alma, mas sim como um agregado complexo: como a Qabbalah e sua divisão em ruach (sopro vital), néfesh (alma intelectual) e neshamá (alma divina), ou ainda como a tradição egípcia, que divide o homem em ib (coração), ba (individualidade), akh (pensamento ou nous), ka (centelha vital) e ba (personalidade); no rito africano vemos que o axexé deve romper com os laços entre o iniciado e seus irmãos de terreiro, para que seu egum rompa com todos seus vínculos com o ayê (mundo dos vivos). Após a morte, o emi, que é o sopro vital, comparável ao ruach da Qabbalah, é diferente do espírito, é reintegrdo à manifestação após à morte e, curiosamente, possui semelhança linguística com o significado de sopro vital com diversos idiomas orientais: em hebraico, ruach é tanto sopro vital como sopro, vento; ruh, em árabe, é tanto sopro vital como espírito e sopro, vento (Ruh Al-Qudus, Espírito Santo); e a semelhança chega até ao grego: pneuma, tanto espírito como sopro. Pois a vida é simbolizada também como vento, a atividade condicionada é como o vento que segue seu caminho até se extinguir – no Candomblé de Caboclo, as manifestações de entidades como caboclos e marinheiros são chamadas de “vento”. Emi é “força vital”, enquanto eemi é vento. O ori, renasce continuamente na natureza, como o âtman hindu, que está em tudo e o único que reencarna de fato, pois de fato não passa por “reencarnação”, mas sim pela continuação de seu fluxo. Há, então, o ori, que é a porção individual, uma espécie de agregados, simbolizado pela cabeça, também desaparece após a morte, pois é uma porção individual ligada à vida terrena (como nefesh). Então, temos uma semelhança com a doutrina cabalista do renascimento: o egum, o espírito propriamente dito, a sua identidade do ayê (terra) ligada ao que deve permanecer após seu passamento, pois é a porção reintegrada ao Orum. o mundo primordial que foi separado do ayê, que homem algum pode visitar sem antes morrer. O axexé, embora ritualmente seja um ritual de desfazer uma ligação, serve como parte dessa reintegração pessoal (conforme será explicado abaixo).
A metafísica africana, portanto, repete a mesma ideia universal de divisão e reintegração do homem. E, excluindo todo partidarismo, possui uma das exposições mais belas e os rituais mais completos para esta tradução da linguagem metafísica. As riquezas do ritual, os cânticos, o chamado aos Orixás através da música, tudo isso faz parte de uma tradição espiritual riquíssima, vista como “atrasada” apenas por aqueles presos aos preconceitos raciais. Como Canta Caetano Veloso em “Noites do Norte”:
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.”
- Os Mundos
Na mitologia africana, é dito que ayê e orum nem sempre foram separados. Orixás e homens conviviam e transitavam entre os dois mundos, até que um homem tocou as terras de orum com as mãos sujas. Olorum, o senhor dos céus, irado com tamanho desrespeito, separou os dois mundos e proibiu que os homens fossem para orum e que os Orixás caminhassem em ayê. Desta forma, para um homem entrar em orum é preciso morrer e passar pelo axexé, enquanto ao Orixá só é possível voltar à terra através do corpo de seu filho. Aqui, temos uma característica importante da escravidão impressa na exposição da metafísica e na prática religiosa: enquanto na África, a terra sagrada e dos ancestrais, o chamado aos Orixás é direto, feito por aquela família ou tribo que faz seu culto, no Brasil escravista o Orixá era chamado também com outros sentimentos: o da saudade, o da restauração e o da justiça. A saudade da África, da liberdade de culto de seus antepassados, foi um elemento decisivo na compilação da religião afro-brasileira e influenciou a sua cosmovisão – isso explica, talvez, o certo esquecimento do Orixá Okô, da agricultura, e a predominância de Ogum, Orixá da guerra, e Xangô, Orixá da justiça: pois como cultuar a fertilidade da agricultura se seu produto seria entregue aos senhores? Como um escravo pode pedir ao Orixá uma colheita farta, se esta colheita não será tua?
Da mesma forma, a ideia de reproduzir o mundo africano foi o que permitiu a sobrevivência da identidade africana. O africano só tinha três possibilidades: o banzo, a saudade mortal, a assimilação ou a resistência. Muitos escolheram a resistência e fizeram o que foi possível, mesmo com o sincretismo, para fazer sobreviver um pedaço da África no Brasil. O terreiro é uma representação da África, mas não só uma representação cultural, mas uma tentativa em fazer o máximo possível para recriar o espaço da terra sagrada que fazia o Orixá, conforme autorizado por Olodumaré, descer à terra novamente. É dito nos terreiros que se o Orixá descer fora do terreiro, ele nunca mais volta, pelo desgosto que será causado pelo atual estado da raça humana. Desta forma, a descida do Orixá não é apenas uma ligação entre o culto dos homens e o Orixá, mas uma conexão entre dois mundos que eram unidos e agora estão separados. A ideia de dois mundos separados não é estranha à metafísica universal. A descrição hindu nos puranas possui ideia semelhante: o mundo dos vivos é uma separação invisível entre dois mundos que já foram conectados:
“Ao entrar no mundo material, a alma pura torna-se condicionada pela atmosfera material, que é criada pela energia externa sob o controle do Senhor Viṣṇu. Assim as entidades vivas ficam sob o controle de uma energia externa, daivī māyā. Vivendo sozinha e confusa na floresta, ela não consegue obter a associação dos devotos que estão sempre engajados no serviço ao Senhor. Já na concepção corpórea, ela recebe diferentes tipos de corpos sucessivamente sob a influência da energia material e impelida pelos modos de natureza material. A alma condicionada caminha algumas vezes para planos celestiais, outras para planos terrenos e algumas vezes para planos baixos e de espécies inferiores. Assim, seu sofrimento continua devido aos diferentes tipos de corpos. Estes sofrimentos e dores são misturados algumas vezes. Algumas vezes tais coisas são muito severas, outras não. Estas condições corpóreas são adquiridas devido às especulações mentais da alma condicionada. Ela usa sua mente e os cinco sentidos para adquirir conhecimento, e isso produz os diferentes corpos e condições. Usando os sentidos sob o controle da energia exterior, māyā, a entidade viva sofre as misérias da condição de existência material. Ela que de fato busca pro alívio, é geralmente desnorteada, embora algumas vezes consiga algum alívio após grandes dificuldades. Lutando pela existência neste caminho, ela não pode alcançar o abrigo dos devotos puros, que são como abelhas engajadas no serviço amoroso nos pés de lótus do Senhor Viṣṇu.” – Śrīmad Bhāgavatam, 5,14
As semelhanças não param na separação entre a separação entre os mundos. Da mesma forma que o Vedanta, a tradição africana possui a ideia dos Mensam Orum, as nove esferas entre o ayê. Na Qabbalah, segundo o Rabino Abraham Abulafia, o plano material terrestre é um plano intermediário entre nove planos concêntricos, superiores e inferiores – as almas reencarnam no guilgoul conforme suas ações, em planos superiores ou inferiores. Como escrito nos versos do Bhagavatam citados acima, os planos em Mesam Orum também são inferiores e superiores: há o orum burukú, reservado aos maus, orun afefé, para a recuperação, e orun maré, reservado apenas aos Orixás e Olodumaré.
Como nas diversas mitologias antigas, há uma separação entre os dois mundos – acessível por feitos heroicos, como dos Orixás, ou pela ligação com o Orixá, feita na terra, desfeita no axexê, mas no sentido de desfazer aquilo que ligava na terra o homem e o Orixá.
- Conclusão
Nossa intenção não é revelar os segredos da tradição afro-brasileira. Embora o artigo tenha passado as diversas ligações da metafísica africana com as outras metafísicas, o principal aqui é esclarecer um ponto que está diretamente ligado ao preconceito. Pois o preconceito, além das raízes sociais e raciais, também está enraizado na mistificação da pobreza da tradição afro-brasileira. O principal argumento contra a tradição afro-brasileira está em sua suposta “pobreza espiritual”. Pois o brasileiro já aceita muitas coisas diferentes da religiosidade dominante: aceita de bom grado a prasada (alimento ritual) dos hindus, mas imagina que a comida das festas do terreiro pode causar mal, pois foram “consagradas aos demônios”; já aceita os fenômenos pentecostais do “Espírito Santo” como manifestações do Deus cristão, mas ainda vê a manifestação dos orixás como manifestações demoníacas; já aceita o paganismo importado da Europa, mas considera a mitologia africana como “contos ignorantes”; já toca músicas com instrumentos e dança nas igrejas católicas carismáticas, mas abomina os xirés dos terreiros; aceita com naturalidade as “ofertas” feitas nas igrejas evangélicas, mas encara os ebós como “trabalhos para o mal” e diz “chuta que é macumba” ou “não encosta que o capeta te persegue”; admira a roupa e as barbas dos judeus ortodoxos, mas ainda apedreja aqueles que usam as indumentárias africanas.
Temos uma clara demonstração de ignorância profunda e racismo. A ignorância está no fato de não se informar sobre as práticas das religiões africanas, resumindo-as à superstição. Mas o racismo ainda grita. A falta de vontade em aprender é fruto de um motivo muito claro: “é coisa de negros”. O racismo não é apenas a ignorância, mas também a mãe da ignorância.
A tradição afro-brasileira, além de um símbolo de luta e de um exemplo de como o racismo é uma vergonha e uma dívida histórica, também é um fenômeno sociológico interessante e riquíssimo, talvez algo único em todo o planeta: pois muitas tradições grandiosas ruíram e ficaram no passado quando seus impérios ruíram, mas a África foi capaz de sobreviver mesmo à diáspora e à escravidão, sendo reproduzida com toda sua riqueza em um território hostil e opressor, ainda que em meio ao sincretismo e sistematização inovadora.
Olóri Ijeniya a padé olorí pa!
[1] FATUMBI, Pierre Verger, Lendas Africanas dos Orixás, IV Edição, Fundação Pierre Verger / Carybê e Corrupio Edições e Promoções Culturais, 1997.
https://rafdaher.wordpress.com/2016/08/30/metafisica-afro-brasileira/