A Doutrina Tradicional dos Elementos (Lição III): Os Elementos no Mito da Caverna de Platão. Símbolos da Hierarquia Ontológica e dos Estados do Ser

Os Elementos como símbolos dos estados múltiplos do Ser

Podemos utilizar os elementos como formas materiais, segundo autores antigos, para uma metáfora ontológica. É possível utilizar os elementos como representação dos estados do Ser (citando René Guénon). E isso se dá porque os elementos não são apenas tipos de matéria, de corporeidade, eles são coisas que possuem em si mesmas uma dimensão mais do que material, supramaterial, uma dimensão espiritual, metafísica.
Quando dividimos entre elemento material e elemento espiritual ou metafórico dificultamos as coisas. Acredito que para compreender o que são os elementos, na concepção autêntica e pré-moderna, precisamos deixar de lado esse conhecimento que corresponde a ontologia dualista, porque essa divisão do mundo em dois partes(material e espiritual) é moderna, cartesiana.
Para os gregos não existiam elementos meramente materiais ou meramente espirituais. Também para os filósofos latinos se passava o mesmo. Para podermos compreender a essência dos elementos como estados do Ser não devemos separar muito radicalmente entre materialidade e espiritualidade. Para os gregos, o mundo não estava separado de seu princípio. Ele não era radicalmente imanente o radicalmente transcendente, e os princípios do ser não eram apenas puramente transcendentes. Havia uma transcendência imanente (ou imanência transcendente) que explica melhor a própria natureza de muitas coisas.
Isso é muito importante para compreender a natureza dos elementos. Os elementos não eram apenas materiais ou espirituais, eles eram algo unificado, eram os sintemas (synthema) dos neoplatônicos.
Quando falamos da Terra estamos simultaneamente falando de uma forma de corporeidade ou gravidade, mas também de uma forma ontológica, de um estado do Ser. Para compreender melhor os princípios da física sagrada, da ontologia pré-moderna, precisamos fazer esse comentário muito incomum ou inabitual para os modernos, no sentido unir e integrar dois polos opostos, separados pela modernidade.
Quando falamos anteriormente sobre o que é internalidade, ficou claro que tudo para os gregos está posto na internalidade. Nessa internalidade podem estar coisas mais exteriores ou interiores, mas tudo faz parte da grande internalidade do Logos. O material, o corpóreo não está fora da internalidade, mas no limite da internalidade. O exterior é a continuação da internalidade, por isso, sempre é possível uma troca entre corpo e metáfora.
Segundo Aristóteles, na coisa há um eidos (forma), além de matéria. A forma pode existir, em certo sentido, anteriormente, ontologicamente em relação à matéria. Mas não há separação entre elas segundo Aristóteles. Quando não há matéria não há forma, quando não há forma não há matéria. A matéria não existe fora da internalidade. O eidos (ou forma) procede do Logos, da centralidade absoluta, do Sujeito Radical.
É importante que sejamos capazes de aplicar os elementos aos estados múltiplos do Ser, mas também às formas da pedagogia. A pedagogia antiga era uma forma de iniciação. Uma forma de iniciação cuja finalidade era tornar um homem em potencial em um homem enquanto tal (ontologicamente enraizado). A pedagogia é sempre iniciática. Analogicamente, ela procede e conduz dos elementos mais pesados aos mais elevados, como via de saída da Caverna da ignorância.
Os Elementos no Mito da Caverna de Platão

Platão, no Livro V da República, nos apresenta uma linha de divisão, onde há duas formas de percepção sensorial (ὁρωμένον γένος) e duas formas de percepção intelectual (νοουμένον γένος). Elas são simétricas e essa simetria deve ser estudada profundamente. Podemos tirar muitas conclusões importantes estudando essa linha de divisão platônica que serve como introdução à história da Caverna, à imagem da Caverna.
Através da linha de divisão podemos traçar correspondências com os elementos metafísicos, com os estados do Ser.

Podemos fazer essa conexão de duas formas. Podemos dizer que:
1. fantasia - φάντασία /sombra é Terra,
2. eikasia- εἰκασία/percepção é Água,
3. dianoia - διάνοια/ratio é Ar,
4. intelecto puro/noesis - νόησις é Fogo.
Ou então que há duas séries de elementos, elementos cósmicos e elementos noéticos. Neste caso,
1. fantasia é Terra e Água,
2. eikasia é Ar e Fogo,
e tudo se repete nessa ordem noética -
1. dianoia é Terra e Água e
2. noesis é Ar e Fogo.
Aqui é fundamental distinguir entre eikasia e fantasia. Eikasia é percepção das coisas mesmas. Fantasia é percepção das imagens das coisas. Platão faz diferença entre imagem (οu eidolon, εἰδωλον) e sombra, skiá, σκιά.
Já a dianoia está separada da noesis. Trata-se de duas formas de intelectualidade. Na dianoia há também dois polos, um mais próximo ao mundo exterior, um mais próximo ao mundo interior.
Ao explicar a linha de divisão, Platão diz que há:
1. uma hipótese que é uma projeção racional para o exterior, e
2. uma anipótese que seria um movimento mental que carrega  uma hipótese em uma direção mais alta, onde está localizada a ideia.
A anipótese corresponde a fazer um esforço para recuperar as origens ou fontes do pensamento. Uma hipótese significa um movimento da razão em direção para baixo. Uma anipótese significa por em direção para o alto, e mais próximo ao intelecto. Nós esquecemos esse termo, mas trata-se de uma forma de verdadeira intelectualidade.
No que concerne a modernidade, conhecemos apenas a dianoia, porque perdemos a anipótese e, por isso, não conhecemos a noesis. Eis o problema da Verdade como correspondência com a exterioridade.
É possível fazer uma correspondência entre a Caverna e o Ovo do Mundo. Mais uma vez encontramos aqui os elementos.

 
O Fogo está próximo à saída da Caverna, por isso é importante perceber que o Fogo está dentro da Caverna, mas a Luz está do lado de fora. Fora da Caverna há uma racionalidade e intelectualidade que partem do mundo noético. A Caverna é o cosmos, duas outras partes da linha de divisão. No cosmos há eikasia (percepção) e fantasia (imaginação). O Fogo não é Luz Intelectual, apenas Luz Cósmica. Por isso, tudo dentro da Caverna se ilumina com o Fogo, mas não com a Luz. O Fogo da Caverna é Luz Imanente.
A Terra está na própria concepção da Caverna e os prisioneiros estão no fundo da Caverna, na parte mais baixa, precisamente no elemento Terra. Poucos veem ou notam que a Água também é mencionada na narrativa platônica. Há aí uma ideia interessante, a Água aparece no mito quando o filósofo quer ver melhor o que está no caminho superior, e antes de seguir na estrada superior, menciona-se a Água. Pode-se ver imagens na Água, não sombras. As sombras se projetam no muro da Caverna. Na Água não vemos sombras, mas imagens.
Entra em jogo uma diferença contextual dos elementos mais grosseiros e inferiores. A Terra gnosiológica, metafísica, não é o território das coisas mesmas; as coisas materiais, corpóreas, aparecem no elemento Ar e não no Terra. A corporeidade aparece não como algo meramente material, o corpo não era corpóreo simplesmente, ele era algo também espiritual, perceptível apenas no Ar. Por isso, é importante que haja uma separação relativa à estrada superior na narrativa da Caverna, separando Ar e Fogo acima, da Terra e Água abaixo.
Platão diz sobre a estrada superior que ali há objetos, objetos mesmos, apartados da projeção religiosa. Ao mesmo tempo, podemos dizer que há daemones que estão no Ar, no elemento Ar, essa corporeidade verdadeira é muito diferente das sombras e das imagens. Podemos chegar às coisas, não no fundo onde estão sombras e não coisas.
Os prisioneiros são prisioneiros gnosiológicos, eles não podem tocar e conhecer as coisas. É uma situação como a descrita na Sociedade do Espetáculo de Guy Debord. É interessante que a Terra é também o território em que vivem os mortos. Sombras e mortos. Os prisioneiros estão no Inferno. Eles não participam na Vida. No estado de Vida e corporeidade estão os que estão na estrada superior, que operam com objetos, com instrumentos e com imagens sagradas, Imagens dos Deuses.
Nessa procissão religiosa descrita por Platão, há dois objetos, os objetos-instrumentos e os objetos-imagens dos Deuses. O mundo real está acima da condição do prisioneiro. O prisioneiro é o homem moderno, preso na virtualidade, prisioneiro da TV, esse é o Inferno. As coisas reais estão acima dos idiotas que são prisioneiros absolutos das sombras. As sombras não são realidade, não são as coisas. O elemento Terra não tem corporeidade, mas uma infracorporeidade. O Inferno está cheio de sombras. Os prisioneiros só veem sombras.
Há outra diferença importante entre sombra e imagem. O primeiro elemento do despertar iniciático é passar da Terra à Água. Isso é importante para passar das sombras (skiá) às imagens, por conta de sua diferença. As sombras expressam uma negatividade pura, com algumas correspondências com o corpo. Mas essa correspondência é negativa. É ausência de Luz. Os prisioneiros que veem sombras estão mergulhados na ignorância absoluta. A primeira fase da liberação é passar à Água, para a visão de imagens. As imagens não são coisas, mas estão mais próximas às coisas. Na Água pelo menos podemos ver como em um espelho, não podemos realmente tocar e perceber as coisas, mas nossa visão está mais límpida. A diferença entre sombra terrestre e imagem aquática é importante para a teoria da imaginação. A imaginação aquática é uma forma de abordagem poética da realidade. Quando as pessoas não estão satisfeitas com as sombras entra a missão liberadora da Água, propiciando a passagem das sombras às imagens. Este é o caminho para se chegar às coisas mesmas. Para o prisioneiro gnosiológico, elas aparecem como algo transcendente. Apenas libertando o homem das sombras e das imagens que ele pode alcançar essa transcendência.
Quando o filósofo sai da Caverna onde ele está? Que mundo é aquele? Trata-se de um mundo intelectual, mas ele está no Mundo. Ele sai do Inferno para o Mundo. Quando o filósofo sai da Caverna ele está na realidade intelectual, onde também há Terra, Água, Ar e Fogo/Luz/Sol. Mas trata-se aqui da Realidade Absoluta, arquétipos que são a origem do cosmos. Eles possuem, também, sua ontologia, seu Ser. Para Platão, naturalmente, as Ideias são Ser, não são projetos do Ser, mas o próprio Ser, o verdadeiro Ser. Por isso, quando o filósofo sai do cosmos, se manifesta o cosmos real, não se manifesta o Nada, nem uma fantasia, ele entra na Realidade, a Realidade que é, a Realidade ontológica. O filósofo penetra no Ser, que não é algo privado de multiplicidade. Para Platão, o Ser é sempre Um - Múltiplo. Por isso, essa realidade que se abre por cima da Caverna não é a pobreza da multiplicidade, é uma realidade total e supracósmica, e tudo (πᾶν) por isso para Platão era importante para a República, a sociedade ideal, fazer do homem um filósofo através de uma educação porque nenhum Ser normal quereria abandonar o mundo real se ele chega lá espontaneamente por seus próprios esforços. 
Assim, a pedagogia serve para Platão como único instrumento que força o filósofo a retornar ao Inferno, à Caverna. Para o filósofo, a humanidade são sombras no Inferno. Por que retornar? A modernidade é precisamente a forma mais ampla e direta disso onde todas as imagens são ilustradas de uma forma direta na virtualidade, na sociedade informacional. Essa descida/decadência chega ao limite, ao ponto mais baixo da Caverna. É a partir daqui que deve começar o retorno, a ascensão, a saída, para todos.
Esse é o esforço dos filósofos para salvar os idiotas que querem cair sempre cada vez mais baixo. Com algum sucesso, esse sistema pedagógico, filosófico, religioso, estético, tudo isso se tornou a base das conquistas europeias por séculos. Nós éramos capazes de enobrecer a humanidade, gerando filósofos, visionários, santos. Por muitos anos, contra toda essa inércia de cair ainda mais baixo, os filósofos foram capazes de salvar homens, mas os filósofos perderam sua posição com a chegada da Modernidade. Ainda assim, sempre existem filósofos. Por isso, não devemos ser pessimistas. Temos grandes histórias de sucesso e pequenas histórias de derrota, de triunfo das sombras sobre as Ideias, sobre as verdades ontológicas.
É importante enfatizar essa presença explícita e implícita no contexto das figuras de Platão na Caverna. A Doutrina Tradicional dos Elementos possui uma operatividade que pode ser utilizada para perceber, compreender, entender, de modo a recriar essa dimensão que nossa cultura e nossa ciência e nossa civilização perderam.
Na ciência tradicional há sempre uma dimensão iniciática. Tudo possuía esse elemento iniciático cuja função era transformar um homem virtual em um homem real. Quando o homem nasce ele é virtual, e é apenas com a pedagogia, com a ciência tradicional, que o homem vira homem. A pedagogia deve voltar a ser exatamente sacral e iniciática em todas as culturas, tal como era no passado.